Demorou, mas aconteceu: tô feliz com o meu corpo
Esse texto pode conter gatilhos de transtorno alimentar, ansiedade e depressão. Pensa direitinho se está bem o suficiente para lê-lo, tá?
Se preferir, leia aqui as edições anteriores que não contém conteúdo deste tipo.
Eu tenho bulimia. Há mais de 15 anos.
E digo “tenho”, no presente, porque acredito que essas coisas não tem exatamente uma cura. Já não provoco os vômitos, mas algo dentro de mim - entre a garganta e o estômago - ainda me diz que isso é uma opção. Uma ferramenta. Um recurso.
Logo, não posso dizer que este transtorno alimentar é algo que tive e hoje já não faz mais parte da minha vida. Faz. Tá aqui. Hoje já não grita como antes, teve seu impacto diminuído graças à anos de terapia, leituras e reflexões. Mas ainda sussurra baixinho.
Quando começou?
Não sei com precisão.
Mas com 12 anos, na mesa no quintal da minha avó, num domingo após o almoço, um tio - ao me ver colocando Coca Cola no copo - disse: “é por isso que você tá ficando gorda e já tá com celulite, olha a quantidade de refrigerante que você já tomou”.
Ele não me alertou sobre os males que o refrigerante podia me trazer. Ele não falou primeiro com os meus pais sobre isso. Não era sobre saúde, muito menos sobre cuidado. Era um homem adulto vendo o meu corpo de menina como um alvo. Nesse caso, de críticas.
A recordação é a de que o meu mundo, tão pequeno na altura, feito só de livros, DVD do RBD ao vivo e Floribella, ficou ainda menor. Me senti como se tivesse sido pega cometendo um crime, algo inafiançável. Daí em diante, minha relação com o meu corpo e com a comida nunca mais foi a mesma. Fui arrancada de um paraíso irrecuperável.
“Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia. Continuava brincando, lendo, agindo como antes, mas de algum modo estava ausente. Tudo se tornara artificial (…) passei a ter uma hiperconsciência das coisas, sem me concentrar em nada específico.”
Annie Ernaux - A vergonha
Sei que, contando isso hoje, pode parecer besteira, algo incapaz de causar danos tão graves assim.
Mas estou tentando encontrar as palavras que eu usava para pensar em mim mesma e no mundo ao meu redor naquela época. Mesmo que eu faça um grande esforço, a mulher que sou em 2024 não é capaz de se ver na menina de 2005. Naquele momento, eu tinha poucas coisas à minha disposição - incluindo uma visão muito reduzida de quem eu era.
Annie Ernaux ainda em A vergonha diz: “não existe memória verdadeira sobre si mesma”. Mas acho que o que vale aqui é o impacto que isso teve em mim e como foi responsável por desencadear algo que sustentou a minha baixo autoestima por tantos anos.
De lá pra cá, vivi uma vida de privação, vergonha e culpa em relação a comida.
Curiosamente (ou não) nenhuma pessoa em volta de mim desconfiou que eu definhava dessa maneira. Ou fingia por não saber lidar. Ninguém interferiu nessa dança onde eu rodopiava sozinha em jejum até desmaiar de pressão baixa (disclaimer: hoje já não os culpo).
Enfim, com o tempo, mesmo conhecendo histórias similares à minha e descobrindo que esse era (é!) um problema tão comum entre as mulheres, eu segui me sentindo muito sozinha.
Porque é isso que transtornos sustentados pelo patriarcado fazem com a gente: nos isolam e destroem as pontes que poderiam nos conectar a pessoas que sofrem do mesmo.
Aí, o ponto de encontro entre dores tão comuns não acontece e a gente acaba se afastando da possibilidade revolucionária de mudar a perspectiva sobre os nossos próprios corpos através dessa troca.
Invés de conversarmos sobre isso, nos abrirmos, compartilharmos os motivos pelos quais a gente passa mais de 24h só com uma maçã no estômago e, claro, como dar um fim nisso, ficamos aprisionadas na atormentada dimensão de um pesadelo que parece não ter fim.
Sozinha em uma questão tão comum, eu tentava ter o controle de tudo o que podia impactar o meu peso e isso ocupou a minha vida durante um bom tempo.
Não havia espaço para experimentações, aventuras, tentativas. Me manter magra era a única coisa que importava. Tentar ficar cada vez “menor” era o meu trabalho full-time, mesmo que eu tivesse um emprego de verdade, estudasse, namorasse e tivesse amigos e família próximos.
Vivi anos presa a uma realidade onde usar 34 era a única coisa que me guiava. Arremessada para fora da vida real, isolada numa nóia só minha, mesmo que compartilhável com tantas outras meninas.
“Controlar o corpo é desejar que ele cumpra certas expectativas sobre as quais ele não tem agência, o que não é justo.”
Como então eu consegui romper com essa narrativa tão comum?
Antes de responder essa pergunta, vale dizer que eu sei que sou uma mulher magra. E, justamente por isso, sei também que é mais “fácil” pra mim dizer que estou confortável com o meu corpo. Afinal, não ouço comentários ruins, não sofro para achar roupas em lojas, não tive dificuldades em me sentir desejada por alguém…
Mas, pra esse texto ser possível, faço o recorte de comparar a minha versão atual com a passada. É a comparação mais justa que posso fazer.
Vale dizer também que eu não estou aqui para vender soluções prontas. Vocês sabem. Menos ainda para assumir o papel de mulher 100% segura que nem liga tanto assim pra aparência.
“A quem eu quero enganar? Sou humana, eu também faço parte do culto à beleza, eu existo nessa estrutura, me prostro diante dela e peço por suas bênçãos; estou também entregue a essa escalada interminável.”
Isso não é um guia para alcançar o amor próprio e, muito menos, um passo a passo de como deixar de ter um transtorno alimentar.
É só um desabafo com começo, meio e fim de uma história que teve (e ainda vai ter!) muitos vais e vens. Eu ainda mantenho alguns hábitos ruins (mas infinitamente menos maléficos pra minha saúde física/ mental), tipo me pesar toda semana. Eu ainda stalkeio uma influencer específica e que foi o meu “objetivo” de corpo durante muitos anos.
Ou seja, não é que eu nunca mais me senti mal com a minha aparência. Acho que isso é impossível, aliás. No capitalismo criando um problema e vendendo 9378283 soluções pra ele a cada segundo? Não mesmo.
“É muito difícil amar a coisa mais real que conhecemos”
diz Vanessa Guedes num texto brilhante sobre autoimagem, identidade e o olhar do outro.
Mas entre odiar cada centímetro de mim e conviver em uma harmonia saudável com esse conjunto de pele, gordura e ossos existe uma longa e instável ponte pela qual eu tenho conseguido passar.
Recentemente, fui à Ilha da Madeira.
Andei em montanhas altíssimas, acima das nuvens e vi o sol nascer por de trás delas. Nadei em piscinas naturais feitas por água salgada, vi vaquinhas peludas pastando em campos altos, muito acima do nível do mar. Vi cachoeiras desaguando no oceano e também no meio de uma rua. Juro!
E, antes que eu pudesse fazer o comentário clichê e cafona de “como somos pequenos perante a imensidão da natureza” (sim, somos), o que veio mesmo à minha cabeça enquanto comia um bolo de mel (típico da região) foi como eu estava grata por estar ali; grata pelo meu corpo me permitir conhecer uma parte da existência de uma amplitude e uma intensidade avassaladoras.
Como odiar pernas que me levam para os caminhos mais bonitos em que eu já passei?
Ampliar o significado que o meu corpo tem pra mim foi o que salvou a minha vida. Literalmente, inclusive. E talvez isso responda a como eu consegui ter a audácia de assumir que estou feliz com ele.
E silenciando, na medida do possível, a quantidade absurda de ruído que vem de fora, desenvolvi um olhar atento ao que está ao meu redor; o que me ajudou a fazer essas descobertas:
É o meu corpo que me leva para conhecer lugares que, antes, eram só devaneios de uma adolescente que lia demais;
São as minhas pernas que levam os meus cachorros (aka as minhas criaturas favoritas) para passear;
O meu corpo é também:
Casa de sonhos ainda não realizados;
Lugarzinho remoto onde as lembranças mais bonitas moram;
Território capaz de receber e dar tanto amor, de beijar na boca, abraçar os meus amigos, levar a minha mãe no cinema.
Estar sóbria também me ajudou a parar de querer sair daquele corpo que eu odiava tanto. Com a consciência sempre presente, fugas e tristes retornos para um corpo-lugar que eu não me sentia confortável, já não eram mais necessários.
O que também tem um lado não tão legal, afinal sem distrações, o que sobra sou eu tendo que lidar comigo: com a minha barriga, com as linhas sinuosas das estrias na minha bunda, com a flacidez dos meus braços. Mas até isso tem se tornado um jogo interessante e desvinculado de tanta dor.
Já em termos mais práticos, tenho mantido uma boa alimentação. Também tenho me exercitado com frequência.
Não, não abri mão do meu jantar favorito - Lays, coca zero e Fini. Sim, eu ainda tenho muita (muita mesmo) preguiça de treinar. Mas ter uma visão mais ampla e madura do meu corpo me faz ter vontade de nutri-lo e mantê-lo funcionando sem grandes problemas; me faz entender que ele é meu aliado.
O amor de verdade cuida e ter chego ao ponto em que as minhas escolhas refletem os meus prazeres muito mais do que os meus medos é motivo de orgulho pra mim.
“Eu tô bastante distante de ser uma pessoa que está disposta a restringir prazeres em um mundo em que, de verdade, inventou que tem alguma coisa errada aqui, porque não tem absolutamente nada errado (…) Meu corpo me proporciona experiências humanas incríveis.”
Honrando a minha vez nesse mundo, vou dando passos mais seguros, cada vez com menos culpa e arrependimento.
Ainda quero ser o instrumento que vai trazer uma criança a esse mundo. Quero ter braços fortes para carregá-la comigo em caminhos desconhecidos por nós duas. Quero também ter mobilidade e autonomia suficientes pra ser uma alma antiga que vive e conta boas histórias.
E não é sobre se sentir maravilhosa, completa e sem defeitos o tempo todo. É sobre assumir as dores e as delícias de estar viva, acolhendo as particularidades de carregar consigo a responsabilidade de existir.
Ao dar de cara com a complexidade do que somos e o que podemos fazer por nós mesmas, nos tornamos grandes e a lembrança dessa grandeza é forte e resistente até nos dias mais difíceis.
Ainda chove muito por aqui, mas me molhar já não é um medo. É um sinal de que estou viva. Presente. Atenta. Forte.
Esse texto é um desabafo.
Mas também um convite.
Vem?
Para ler:
O templo e o parque de diversões (esse texto é a coisa mais bonita e real que eu li nos últimos tempos)
Ano que vem, não vou emagrecer (descobri a newsletter da Vanessa hoje e vou maratonar todos os textos)
barrigas e comparações (a Nati é minha webamiga há uns anos e eu sou, agora não mais secretamente, muito fã dela)
Para seguir:
Mirian Bottan (a Miriam foi a 1ª pessoa que vi falar sobre transtornos alimentares na internet. Posso dizer que ela foi a 1ª pessoa que me fez entender que eu tinha um problema e que precisava de ajuda.)
Esse texto veio na hora que eu precisava e do jeito que eu precisava, obrigada demais <3
"Como odiar pernas que me levam para os caminhos mais bonitos em que eu já passei?" que texto importante, obrigada por dividir conosco <3