Dias de se fazer silêncio
1. Esta é uma edição aberta para todo mundo. Para ter acesso a conteúdos exclusivos da newsletter e ao Clube de Leitura Um Passo, peço que considere me apoiar financeiramente〈aqui〉; 2. "Dias de se fazer silêncio" é o título deste livro de Camila Maccari.
Respira, é a sua resposta depois de eu despejar em você 16.215 palavras em três minutos; quantidade equivalente ao que uma pessoa fala por dia. Falo sobre o avião que caiu na cidade natal do meu pai e que atingiu a pista de skate – aliás, já te falei que um namoradinho que tive beijou a minha melhor amiga, nessa mesma pista, nas férias de dezembro de 2009? Descobri pelo Twitter. Quando percebo, lá estou eu, de novo, falando mais do que a boca, como de costume, sem permitir que o ar passe entre as palavras e sem te escutar. O mesmo acontece quando estou entre amigos, família e até entre colegas de trabalho – estes últimos, pessoas em quem não se pode exatamente confiar para confidenciar a intimidade.
Finjo não saber por que me exponho tanto, os motivos pelos quais acabo sempre falando mais do que deveria, atropelando quem também quer falar, transformando toda conversa em um monólogo. Mas anos de terapia me fizeram criar o horrível hábito de me analisar, de buscar no meu passado qualquer coisinha que justifique os meus comportamentos; então sim, claro que eu sei que é a minha necessidade infantil de ser ouvida, de ser incluída e de ser levada em consideração que faz de mim uma matraca. Existe também uma arrogância em achar que sei muito, que tenho sempre algo valioso a dizer; inclusive – e na maioria das vezes – sobre mim. Não por achar a minha vida interessantíssima, mas pela limitação de encarar tudo com um olhar autocentrado. Sempre a partir das minhas experiências, numa ótica leonina de ver o mundo a partir do meu umbigo.
Em paralelo a isso, preencho também os meus dias com bastante barulho: as engrenagens da geladeira, os podcasts, os latidos dos cachorros, uma música atrás da outra, a moto passando, a garganta fazendo rum rum rum, a máquina lavando a roupa, as reuniões e entrevistas de emprego, a vida de semiconhecidos pelos stories: ruídos domésticos, mecânicos, passivos ou ativamente produzidos por mim. Sem criar espaço para o silêncio se rastejar no chão da sala ou pairar no vácuo entre as minhas orelhas.
Essa sou eu
ou era
até perceber o quanto eu perdia
por simplesmente não escutar
ou
não notar que o que
eu queria criar não seria
jamais encontrado
no meio de tanto ruído.
Li há alguns anos, mas só entendi agora quando Virginia Woolf disse que as palavras, assim como nós, para viver à vontade, precisam de privacidade. No ano passado, decidi que ia – de propósito – me enfiar em uma caverna e tentaria, ao máximo, me reaproximar daquilo tudo que eu, por instinto, mais gostava de fazer: escrever, desenhar, ler e aprender sobre assuntos que, por algum motivo, nunca assumi que eram de meu interesse. Foram 12 meses no que chamei de sabático improvisado e que, claro, não aconteceu do jeito que eu planejei: eu não contava que o silêncio dos dias submersa em mim mesma fosse me assustar tanto. A quietude revelou muita coisa que eu temia encontrar quando a evitava a todo custo. Temia o silêncio porque ele me aproximaria de mim mesma, da história do meu corpo, dos medos descabidos e das esperanças ingênuas. O silêncio despertaria três desejos paradoxais: fugir, transformar ou aceitar.
Transformei.
O desassossego foi cedendo lugar a uma outra sensação, menos aflita e angustiante. Com o tempo, rejeitar o barulho do mundo para criar um espaço de introspecção deixou de parecer um isolamento e virou um alívio. O silêncio se tornou o caminho e, ao mesmo tempo, o fruto de um movimento interno bastante intenso: o de absorver complexidades que eu não saberia lidar se estivesse mais ocupada as expondo do que as ouvindo.
Acabei então criando o costume de procurar pelo silêncio, criando um espaço vazio – um vão, entre o mundo e eu. E tem sido justamente nesse intervalo que me sinto forçada a criar um novo idioma para dizer o que antes não podia ou não conseguia ser dito com palavras emprestadas. Ficar em silêncio foi a lição mais valiosa que aprendi em meio às transições todas que atravessei nos últimos tempos. Só agora percebo o quanto eu precisava permitir-me silenciar para dar lugar à curiosidade de conhecer tantas coisas, inclusive o outro, inclusive a mim.
“Talvez um grande silêncio possa
interromper esta tristeza,
este não entendermos jamais
este ameaçar–nos com a morte,
talvez a terra nos ensine
quando tudo parece morto
então tudo está vivo.”
Pablo Neruda
Quando tudo exige explicações constantes (a performance de si mesmo, a opinião sobre tudo, se justificar e se fazer legível aos outros o tempo todo), silenciar surge como um gesto de autonomia. O silêncio aqui é ativo, escolhido, e proporciona a mim a liberdade de me isolar do ruído externo e me tornar capaz de escutar o meu corpo e, a partir dele, fazer uma análise mais rica e menos pessoal do mundo.
Um eco que conecta todas as coisas.
Quieta, mais ouvindo do que falando, mais escrevendo do que abrindo a boca, noto a construção de um ambiente mais seguro e frutífero para mim: a vontade de agradar os outros indo embora, as inseguranças se desfazendo, a crueldade com que me encaro se dissipando.
Aqui, trato o silêncio como uma escolha, um privilégio reconhecido de quem sabe que, caso necessário, vai falar o que deve ser dito e bem alto, de preferência. Não temo os erros do meu próprio discurso, não me escondo no silêncio: ao contrário, me reservo às palavras que possuem urgência e significado. Todas as outras deixo nos rascunhos, rabisco sem critério pelos cadernos espalhados e pelos inúmeros arquivos no Google Docs que podem se tornar um livro ou nunca mais serem reabertos.
Economizo nas palavras faladas para dedicá-las à escrita, numa exigência minha que ignorei até agora. Tratando as minhas prioridades com respeito, escutando o que o meu corpo fala, o que o seu corpo fala, sem tantas interferências. Manejando com cuidado as palavras, sejam ela em que formato for.
Não sei se esse exílio durará muito,
Talvez eu volte do silêncio com algo a dizer.
Até lá,
Prometo anotar tudo.
Para ler:
Passeio ao farol - Virginia Woolf (dá quase para ouvir o silêncio criado com precisão por Virginia Woolf, que o utiliza como ferramenta para moldar as dinâmicas entre os personagens, a ponto de transformá-lo em mais um deles. Se você nunca leu nada dela, comece por aqui 💙)
É tão bom encontrar um texto que expressa o que a gente é e sente por dentro.
Me identifico tanto com os seus textos. Esse me atravessou de uma maneira tão bonita. ❤️