O passado pesa como se ainda pudesse ser alterado. Remendado. Não apenas lembrado, mas corrigido, levado de volta ao momento exato onde tudo se partiu e, dessa vez, feito de outra forma. Mas sei que não dá. E, ainda assim, gasto meus dias tentando reconstruí-lo, revisitando palavras que já foram ditas, gestos que já foram feitos, decisões que, uma vez tomadas, tornaram-se paredes sem portas nem janelas.
Em fevereiro do ano passado, publiquei esse texto na newsletter. Falava <com medo e alguma empolgação> sobre o período de sabático improvisado que começava naquele mês. Eu havia decidido passar 2024 sem trabalhar formalmente, tinha me organizado financeiramente para isso, e a ideia era bem simples: dedicar tempo aos meus interesses, hobbies, paixões, tudo aquilo que sempre ficava para depois, soterrado pela pressa da vida adulta.
Mais de um ano depois, volto aqui para admitir: o plano meio que deu errado. Digo "meio que" porque ele também deu meio certo: 2024 foi o ano em que assumi que a escrita é a minha coisa no mundo. Também li de uma forma que nunca tinha lido antes, me entreguei às palavras como quem, por fim, aceita um destino. E decidi, finalmente, escrever um livro (um processo estranho de renúncia e autonomia, mas disso falo depois).
Claro que, de certa forma, aproveitei esse tempo livre: tomei cafés demorados no meio da semana, fui à praia em plena terça-feira, li por horas inteiras sem culpa, caminhei sem destino pela cidade bonita que escolhi viver. Aprendi, fiz cursos, fui à academia em horários de herdeira. Foi bom. Resisto à minha tendência ao pessimismo e admito: foi bom.
Qual o problema então?
O apego ao controle - do tempo, especificamente. Na ansiosa tentativa de aproveitar cada dia desse período, passei mais horas planejando a liberdade do que a vivendo. Organizei cada minuto do meu descanso e gastei mais tempo decidindo o que fazer do que simplesmente fazendo coisas conforme o desejo ia surgindo. Foi importante e um verdadeiro alívio ter tirado esse tempo pra mim. Mas poderia ter sido mais, se eu tivesse permitido a desordem ser o que ela é. Se eu tivesse desapegado da necessidade de organizar até o que demanda bagunça. Se eu tivesse confiado mais no fluxo das horas, ao invés de tentar enfiá-las dentro de uma planilha de Excel emocional.
Metade de mim quis brincar na pausa improvável da vida adulta, a outra quis catalogar cada instante de leveza, tentando congelar o que só existe no movimento.
Tive medo de soltar as rédeas do tempo e acabar descobrindo que amo a vida - algo que sempre pareceu não ser pra mim. E talvez tenha sido por isso que, quando a liberdade finalmente chegou, me afastei. O medo me impediu de abraçar as horas e vê-las como aliadas. Uma fome de ser livre que, ao ser saciada, se dissipou, talvez porque eu nunca tenha acreditado que merecia estar sentada àquela mesa.
Agora, como é de meu feitio, analiso o que passou até doer. Volto nas fotos de cada mês, procurando evidências de que sim, eu vivi. E, com isso, perco de novo a noção do presente, girando num círculo vicioso de querer dominar o tempo, mesmo sabendo que ele está ao meu favor - mas não dessa forma.
*
O <agora> como um estado de não presença.
Algo que deveria ser vivido, mas que é consumido pelo cálculo, pela revisão de tudo o que já foi e pela projeção do que ainda não chegou. O hoje se esvazia porque sofro pelo oco que causei no passado e pelo futuro que ainda não me ilumina. Eu deveria estar aqui, mas não estou.
Estou antes.
Estou depois.
Nunca exatamente onde deveria estar.
Vivo entre a culpa e a ansiedade, os pés afundados em um terreno que nunca se firma. O passado pesa como se cada erro tivesse deixado um rastro físico, um acúmulo de falhas tatuadas no corpo, na voz, no modo como ocupo os espaços. O futuro, esse horizonte indecifrável, me escapa, me ilude, e no vazio entre um e outro, me percebo hesitando, como se apenas viver não fosse suficiente, preciso sempre me justificar.
O que eu podia ter feito com o meu tempo livre (que, convenhamos, dificilmente vai voltar a existir dessa forma) me persegue nos objetos, nos gestos das pessoas ao meu redor, nos caminhos que não tomei. Me encara de um lado, com os olhos carregados de tudo o que deixei escapar; e o que ainda não sou/ não fiz/ não vivi me observa do outro, com a dureza daquilo que exige que eu me torne, me pressionando com urgência. E eu, suspensa entre eles, sinto que não pertenço a nenhum tempo, a nenhum espaço.
E talvez seja isso. Talvez eu nunca tenha vivido nada por inteiro. Talvez tenha passado a vida olhando para trás ou para frente, sem nunca firmar os olhos e os pés no <agora>. Talvez seja esse o verdadeiro arrependimento. Não por um erro cometido, mas por ter deixado que o tempo me escapasse enquanto eu tentava moldá-lo em algo que nunca poderia se formar. E isso é o que mais me atormenta: a suspeita de que passei a vida à margem da minha própria existência.
Pensando sobre
Planejando para
Me arrependendo de
Sem nunca ter vivido dentro do minuto que me pertence.
Será que, se eu fechar os olhos, inspirar fundo e colocar aquela do Gil pra tocar, o presente me aceita de volta?
Inauguro o otimismo em mim e penso que, talvez, ele nunca tenha me deixado: ao contrário, esperou, paciente, que eu cansasse de fugir. O <agora> não exige justificativas, nem cálculos, nem revisões. Ele só pede que eu esteja. Que eu abandone as tentativas de domesticar a vida e simplesmente me entregue ao seu descompasso, à sua não linearidade.
“Calma, coração.
Exercita ser quem tu é.
Fica contigo um pouco.
Coleciona o domingo de hoje.
Deixa de obedecer tanto.
Ninguém precisa de instruções para iludir relógios.
Porque o tempo.
Foi a gente que inventou.”
Quem sabe, um dia, eu me pegue vivendo sem pensar no verbo que define o que faço. Apenas existindo, sem precisar catalogar, planejar, ou me arrepender. E se eu prestar atenção, talvez encontre, pairando no ar, um convite para não mais perder esse momento pensado em outro.
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Muitos dos textos que publico aqui nasceram das páginas dos meus diários. O journaling, aliás, foi o meu primeiro espaço de escrita – há mais de 20 anos. Foi preenchendo, dia após dia, meus caderninhos que comecei a compreender o que se passava dentro de mim.
Por isso, criei um Workshop Gratuito de Journaling, exclusivo para assinantes da newsletter – um convite para explorar a escrita como ferramenta de autoconhecimento e expressão.
Workshop Gratuito de Journaling - Clube Um Passo
Este workshop é um convite para quem deseja explorar a escrita como ferramenta de autoconhecimento. Vamos mergulhar no relato de si: a escrita como espelho, registro e subversão.
O que você vai encontrar:
O diário como espaço de reflexão e transformação pessoal
Como a escrita molda nossa memória e identidade
Perguntas que desafiam a superfície e provocam profundidade
Exercícios práticos para desbloquear sua escrita pessoal
Para quem é?
Para quem busca olhar para si com honestidade, interpretar suas vivências e transformar pensamentos dispersos em escrita de diário.
Quando e onde?
26/04
10h 🇧🇷 14h 🇵🇹
2h de duração
Via Google Meet