Tenho muitos amigos artistas.
Por <artista> quero dizer fotógrafos, artistas plásticos, roteiristas, produtores musicais, DJs, tatuadores, ilustradores. Poucos deles, infelizmente, vivem do produto de suas artes: é comum terem trabalhos normais que garantem suas subsistências enquanto, em paralelo, continuam a criar. Trabalhos que pagam o aluguel, o supermercado, o cartão de crédito. Pagam até as viagens, a educação, os materiais - itens necessários para fazer arte. E então, nas horas que sobram (quando sobra) voltam à criação como quem retorna à própria respiração depois de prender o fôlego por muito tempo.
São artistas-proletariados que acordam cedo, pegam transporte público, respondem e-mails, lavam roupa. Que sabem o nome do cansaço que chega às 19h, que escrevem à noite com os olhos ardendo, que desenham enquanto as crianças dormem, que produzem música enquanto o arroz cozinha, que bordam entre um holerite e outro.
Ser artista full time é um privilégio concedido à pouquíssimas pessoas.
Quem pode se dar ao luxo (ou ao desespero) de viver da própria arte? Sem ter que recorrer à um acúmulo exaustivo de funções (relacionadas ou não ao ofício de artista)? A arte pela arte raramente é suficiente para, não só colocar comida no prato, mas para garantir prosperidade.
Virginia Woolf disse certa vez que toda mulher deve ter um teto todo seu para escrever e eu jamais discordaria. Mas quem paga por esse teto quando a escrita não consegue fazê-lo? Eu tenho urgência em escrever e contar as minhas próprias histórias, mas o que fornece as ferramentas necessárias para isso é o meu trabalho normal. O mesmo que me deixa exausta e, muitas vezes, sem energia nenhuma para escrever.
Afirmar-se artista, nesse contexto, é resistir a um mundo que nos quer apenas como instrumentos do progresso. Mas o que realmente progride quando abro mão daquilo que me faz sentir viva?
E mesmo quando a arte não é fonte de sustento, ela segue sendo um chamado.
Responder a esse chamado depois de um dia inteiro sendo útil, produtiva, profissional é difícil porque a arte exige disponibilidade. E é aí que mora o paradoxo: a vida concreta, que financia nossa existência, é a mesma que esgota a energia de onde viria o impulso criativo.
Seria então mais fácil abandonar a arte e focar na construção de uma vida confortável e segura. Mas a maldição do artista começa quando ele se reconhece como tal: antes disso talvez houvesse salvação, depois disso, nada é do mesmo jeito. Uma vez assumido artista, tudo passa a ser meio errado se a arte não estiver envolvida. Deixar de criar soa como assinar a própria sentença de morte: o artista que não cria apodrece por dentro, mesmo com a geladeira cheia. A vida que se leva, nesse caso, é uma meia-vida: a vida possível, não a desejada. E o sofrimento vem disso <do intervalo entre tudo o que só se imagina dentro e o que se vive fora>.
E, apesar da subsistência, o trabalho formal e a rotina comum nunca serão suficientes. A arte vem justamente para preencher espaços, criar o lúdico, expandir o real. Proporcionando, inclusive, os encontros com a própria sensibilidade: com uma ideia que nos atravessa no meio do expediente, com uma história que alguém nos conta no intervalo do café no trabalho e que mexe tanto com a gente que vira música, texto, desenho. Aqui, a arte deixa de ser um destino maldito e vira o refúgio que recarrega, relembra e reorienta.
Daí vem a insistência em abrir espaço na agenda para criar: como um gesto de respeito com a artista que reside dentro de mim. Deixá-la morrer é me deixar morrer.
Então me viro, acordo mais cedo, durmo mais tarde e invento um espaço-tempo onde a arte possa respirar: no bloco de notas do celular, nos espacinhos em que moram a ilusão de que sou dona do meu tempo, na pausa do almoço, no passeio com o cachorro, no escuro do quarto.
Sem julgamento. Sem olhar de fora. Só fazendo.
Porque, se eu não fizer isso (e se desistir, de novo, da ideia de ser escritora e tentar, outra vez, me convencer de que não quero mais escrever) vou viver mais dez anos assombrada por tudo o que eu podia ter sido.
*
Criar arte nas brechas é o que mantém a minha cabeça acima da lama, justamente porque escrever não é a minha única tarefa. Tampouco é um plano B, um estágio antes do “sonho”. É a minha vida e ela acontece enquanto todo o resto também está acontecendo.
Clarice Lispector dizia que, mesmo sentada numa cadeira, olhando para o horizonte, longe de sua máquina de escrever e sem caderno e caneta à mãos, estava escrevendo. Eu a entendo. Algo em mim está sempre pensando na escrita, mesmo quando estou numa reunião com cinco Front-Ends e um Product Manager discutindo os rumos de uma feature que temos um deadline apertadíssimo para entregar.
A gente vai vivendo, guardando os silêncios, anotando os absurdos e recolhendo matéria bruta para transformar em arte em algum momento. A criação vai se infiltrando nos espacinhos do cotidiano, como praga ou como milagre. Como praga e milagre.
A arte e a vida se confundem e se justificam. Se o trabalho normal garante a minha sobrevivência, a escrita me mantém igualmente viva. Para mim, a arte não está no depois que tudo der certo: ela está aqui agora, contemporânea e simultaneamente no Linkedin, no Google Docs, no Teams, no Figma, no Substack e nos meus cadernos.
Sou uma <escritora> que também é <designer full time> e não uma <designer full time> que <escreve nas horas vagas>. Aqui, a ordem dos fatores muda tudo. É um deslocamento interno, discreto e definitivo. Me apresento ao mundo da forma como melhor me entendo. No ofício que garante as contas de luz e internet pagas, eu funciono num ritmo que não é meu, em nome de algo que também não me pertence. Já na minha arte tenho autonomia, sou dona das narrativas, escolho com precisão as palavras. A definição dos papéis muda tudo.
*
Não romantizo a figura da artista que, mesmo cansada e entre tantas outras tarefas, dá um jeitinho de fazer arte. Todas nós deveríamos ter o estimado teto todo nosso e dinheiro para amenizar as preocupações que, muitas vezes, sabotam e impedem a criação. Aliás, talvez essa conversa nem existisse se a arte não fosse tratada como luxo - privilégio de quem pode passar três meses sem vender um quadro e sem morrer de fome por isso. É inevitável e necessário confrontar nossas próprias limitações. Há um limite para o que podemos fazer em um dia.
Enquanto escrevo esse texto (às 23:33 de uma quarta-feira, pós expediente), penso em você que me lê e também fez ou vai fazer a sua arte ainda hoje, nas brechas da rotina cansativa, dos relatórios do trabalho, das reuniões intermináveis, do transporte público lotado: você não está sozinha. Gloria Anzaldúa dizia que o que nos valida como seres humanos, nos valida como artistas. Não é bonito como ambas as maneiras de estar no mundo se fundem? Os problemas e obrigações parecem insuperáveis e intermináveis, e são de certa forma, mas deixam de ser quando, mesmo esgotadas, achamos um tempinho para criar.
Ninguém irá construir um teto e nos dá-lo, de graça, para que possamos debaixo dele, acolhidas e seguras, fazer arte. Isso terá de ser conquistado, enquanto a nossa arte é criada.
Não disse que seria fácil, mas encorajo a mim e a você dizendo: talvez, seja possível.
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Para ler:
Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo - Gloria Anzaldúa (o texto que me inspirou a escrever essa edição 💙)
Esse mês, estamos lendo Memórias de uma moça bem-comportada de Simone de Beauvoir no Clube de Leitura Um Passo.
Além da discussão, trago curiosidades, análises e estudos que faço não só sobre os assuntos abordados no livro, como sobre a escritora. Um espacinho bem legal para a gente conversar sobre a leitura, fazendo com que cada livro permaneça mais tempo na gente.
O próximo encontro será dia 25/05, então dá tempo de ler!
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“A gente vai vivendo, guardando os silêncios, anotando os absurdos e recolhendo matéria bruta para transformar em arte em algum momento. A criação vai se infiltrando nos espacinhos do cotidiano, como praga ou como milagre. Como praga e milagre”.
:’)
é a fotografia pra mim