A solidão é companheira há muitos anos.
Não consigo lembrar de um tempo em que ela não estivesse presente. Sempre fiel, permanecia ao meu lado mesmo quando outras pessoas estavam por perto. Houve uma época em que éramos tão íntimas que se tornou quase impossível distinguir quem era quem.
Com o tempo, nosso laço se estreitou. Era confortável estar sozinha.
Às vezes por escolha, outras por necessidade, e muitas vezes pelas circunstâncias que me empurravam para esse estado. A solidão era um abraço silencioso, um refúgio seguro onde eu podia contar comigo mesma.
Nos momentos em que o mundo se tornava barulhento demais, quando as paredes sussurravam verdades indesejadas, a solidão funcionava como um colo. Mas como todo relacionamento tóxico, ela me convencia de que apenas ela me bastava. Que eu não precisava de mais ninguém.
Assim, me mantinha distante de todo o resto.
Protegia-me não só do que era ruim, mas também do que poderia ser bom: desenvolver relações, estar presente no mundo, aprender sobre mim mesma através dos outros - coisas que não se encontram nos livros, nem nos filmes. Só a convivência ensina.
“Quando estou só, é com frequência que me deixo cair no vazio. Tenho que ter cuidado e ver onde coloco os meus pés, não vá tropeçar na orla do mundo e cair no vazio.”
Virginia Wolf - As Ondas
Essa alienação dentro de mim mesma me transformou em uma pessoa arrogante.
Aprisionada no meu próprio vazio, comecei a me ver superior aos outros, convencida de que minha pequenez era suficiente; não para ser feliz, claro, mas para sobreviver. E, naquela época, isso bastava.
Mas lembro-me de já me sentir desconfortável com essa ideia desde essa fase.
Como alguém que defende tanto o poder do coletivo em questões sociais e políticas pode optar sempre por ficar tão sozinha? Do que eu tenho tanto medo quando me imagino interagindo com outras pessoas? Qual parte da minha intimidade eu protejo tão cegamente?
Foi aí que estar sempre sozinha, por mais que eu lidasse bem com isso, deixou de ser tão legal. Comecei a desenvolver uma necessidade (comum, aceitável e até saudável) de pertencer. Fazer parte. Ser convidada para fazer coisas, ir em festas ou só ao shopping ver lojas e comprar uma casquinha do McDonald's.
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A solidão tem sua dose, e é nesse mergulho profundo que se esconde sua potencialidade.
Aceito e reconheço a importância de estar em paz quando só. Não nego a experiência válida e necessária de fazer coisas apenas em minha própria companhia, mas às vezes temo a facilidade com que eu me entrego a solidão. Existe em mim uma tendência ao isolamento que flerta com o conforto em estar sempre sozinha.
Só comigo eu não tenho que lidar com opiniões, temperamento e o tempo do outro. Não preciso escutar antes de falar, não preciso escolher palavras com carinho, não preciso prestar atenção em nada além de mim mesma.
Praticando uma honestidade e transparência radicais comigo mesma, me vi evitando encontrar amigos, fazendo piadas com ser antissocial e assumindo a persona da mulher de 30 anos que não muito gosta de sair e tem hábitos de idosa. A verdade é que eu escolhia a solidão por conveniência e porque me habituei a ela pra evitar ser eu na frente dos outros.
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No entra e sai rápido e superficial das pessoas que passaram pela minha vida, algumas foram resistentes e conseguiram romper parte do muro que eu havia construído ao meu redor. Esses amigos me mostraram que a felicidade era possível, que eu podia seguir vivendo, e dessa vez, feliz, se me abrisse mais ao mundo, ouvisse o que estava sendo dito, saísse do escuro triste e cafona em que me escondi e admitisse: preciso e quero mais pessoas ao meu redor.
E, no início, assumir isso foi desconfortável.
Me sentia meio ridícula nesse conflito paradoxal entre querer estar mais cercada de gente versus ter uma dificuldade gigantesca em me entregar com a leveza que acredito que as relações devam ter.
Havia também um monstrinho interno que repetia que eu ficava melhor sozinha; que só, viajando pelas paredes, atravessando os cantos, de dia ou de noite, eu gerenciava melhor as minhas crises e era até capaz de criar novas alegrias.
Foi preciso então alguma coragem pra assumir (primeiro pra mim, óbvio) que era na companhia do outro que eu me percebia humana, falha e vulnerável. E, cá entre nós, estes são os sinais mais claros de que estamos vivos.
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Acho que vou sempre ser uma pessoa mais introspectiva e que prioriza momentos onde o silêncio é interrompido apenas pelos latidos dos meus cachorros.
Eu gosto de estar só, de ficar quieta perambulando pela casa ou pela cidade, perdida entre as coisas que tenho que fazer e algumas paranóias. A minha companhia favorita são os fones que eu coloco nas orelhas de manhã e só tiro no fim do dia.
Mas um alívio, desses que tira um caminhão das nossas costas, me invade toda vez que lembro que não preciso ficar sozinha. Que existe gente que se alegra ao saber que eu tô chegando; que sorri ao me encontrar porque achava que eu não iria.
“Amar é uma proibição de estar só”
A solidão nos coloca em um estado mental breguíssimo a ponto de criarmos uma ideia completamente descabida: de que somos grandes e suficientes demais sozinhos.
No alto da sinceridade radical, assumo: eu sou pequena.
Desse tamaninho 🤏🏽.
E estar com os meus me faz maior.
Com eles sim sou gigante.
Para ler:
Saber pedir ajuda - Um Passo Newsletter (uma edição da news onde falei sobre a dificuldade de pedir ajuda e de como é importante assumir que precisamos de gente na nossa vida. Acho que tô mesmo caindo na real quanto a isso e, finalmente, saindo do casulo kkkk)
Para assistir:
Série Insecure (foi a primeira que veio à minha cabeça quando pensei em amizade. É muito fofinha, engraçada e sensível)
li esse texto e me identifiquei. sempre fui muito fechada e recentemente comecei, por causa da terapia, tentar me comunicar mais com pessoas aleatórias na rua, na academia. sempre me considerei invisível aos olhos dos outros e, ao fazer esse exercício, percebi que outras pessoas também querem se comunicar comigo. a solidão pode ser confortável demais, mas conversar, conhecer pessoas diversas aumenta nossa experiência de vida, traz prazeres que a solidão não dá. beijos e fique bem!
Nossa, que texto! Maravilhoso e MUITO necessário.