Hobbies que não levam a nada
As últimas semanas têm sido preenchidas de bordados, tentativas de fazer crochê, de escrever ficção e samplear músicas no Ableton. Tenho ocupado os dias com hobbies que não serão monetizados ou que, pelo menos, não pretendem ser.
Inclusive, quando comento com alguém que fiz um curso de DJ e outro de escrita, a pergunta que geralmente recebo é “mas você quer trabalhar com isso?”. Não sei. Mas e se eu não quiser? Desvalida o que aprendi?
A nossa disposição para o lúdico foi inibida pelo culto à eficiência.
Começamos a acreditar que uma coisa deve ser feita só para conseguir outra coisa, nunca como um fim em si mesma. O fazer pelo fazer não tem espaço na nossa cultura onde as atividades desejáveis são só aquelas que geram lucro.
Do lado de cá, foram anos levando o “trabalho dignifica o homem” a sério demais. O descanso não era opção numa vida que precisava ser transformada a todo custo.
A falácia da meritocracia ditou a minha rotina: trabalhar e estudar mais e melhor do que eles, abraçar todas as oportunidades sem critério, aprender tudo o que chegava a mim por mais exausta que eu estivesse.
Passar 2h sentada no tapete da sala desenhando com lápis de cor estava completamente fora de cogitação. No corre da vida eu já estava atrasada, já saía com muitos pontos a menos.
Por isso, fazer qualquer coisa só por fazer era apresentado a mim como perda de tempo. Por que usar as minhas preciosas horas envolvida em algo que não me daria retorno financeiro ou intelectual? A inutilidade de certas atividades me causava repulsa.
Então, durante muito tempo, eu só fiz cursos que fossem relacionados à minha área de atuação. Só li livros de não ficção. Só vi documentários e ouvi podcasts que prometiam me ensinar algo.
Tudo, claro, com a intenção de ganhar conhecimentos que me fossem úteis - utilidade esta sempre relacionada a melhoria da minha performance profissional. Mesmo quando era sobre auto-conhecimento e desenvolvimento pessoal, a abordagem era sempre voltada a refinar o meu comportamento para atender melhor às necessidades dos ambientes corporativos e acadêmicos onde eu circulava.
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Essa busca incessante por aprender, trabalhar e se envolver só com assuntos e atividades que tenham algum uso e retorno (geralmente financeiro) nos dá a falsa sensação de estarmos avançando na vida. Uma promessa não cumprida na maioria das vezes, já que todo esse esforço não necessariamente resulta em sucesso. A certeza de que será bem sucedido se “se esforçar o suficiente” gera mais exaustão do que reconhecimento intelectual e monetário.
Mas mesmo tendo isso latente em minha cabeça, mudar esse pensamento ainda me custa.
Me sinto mal por não querer estudar assuntos que me ajudariam a voltar ao mercado de trabalho ou não desejar monetizar algum dos meus hobbies, agora que estou sem emprego formal, por exemplo.
Internalizei a lógica capitalista de ganhar conhecimento apenas para usá-lo como ferramenta de trabalho e fazer qualquer coisa que não vá nesse sentido ainda soa como desperdício de tempo, dinheiro e demais recursos. Me sinto culpada por querer me conectar a atividades que não tem utilidade dentro desse sistema onde tudo tem que servir para alguma coisa.
“Nós estamos, em relação a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis. É por isso que muita gente morre cedo, desiste dessa bobagem toda e vai embora (…) Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior.”
Ailton Krenak
Com alguma insistência, recordo e reforço o meu mantra nessa fase da vida: esquecer a obsessão pelo progresso e dar lugar à curiosidade em experienciar o mundo de outra forma.
Me dedico então a fazer um colar de miçangas com os nomes dos meus cachorros; coloco um disco de vinil pra tocar e o escuto inteirinho sem fazer nenhuma outra coisa ao mesmo tempo. Vejo um filme de 1986 e durante 1h39 não toco no celular; pego os meus cadernos, vou até um gramado perto de casa e passo algumas horas fazendo desenhos feios e escrevendo coisas que ninguém nunca vai ler.
Encontro nos hobbies que não dão em nada uma versão de mim que esteve adormecida, uma versão mais leve. Ela não tem medo de errar e, melhor, ela não conhece o conceito de perder tempo. Pelo contrário, ela ganha minutos quando os dedica a brincar de existir.
Claro que é um privilégio poder tirar os pés da correria e fazer do descanso uma prioridade. A exaustão nos coloca num papel passivo em relação aos cuidados com a gente mesmo. Como pensar em despender minutos fazendo um hobby “bobo” quando estamos tão cansadas?
O estudo e o trabalho constante são as únicas chances de muita gente de melhorar de vida. Não sou lunática a ponto de ignorar o caminho que foi viável inclusive pra mim durante muitos anos. Mas quis falar sobre como é importante desprendermos da necessidade de “progredir” a todo custo.
Você precisa se ocupar, entreter e aprender também por prazer e diversão. Ninguém aguenta uma vida supostamente útil o tempo todo.
“Só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar.”
Carlos Drummond de Andrade
Permita-se ter contato com a experiência de estar viva para além das definições de progresso que te contaram e que, desde então, você acredita sem questionar.
Abra as janelas dos seus olhos, use os dedos para bordar a humanidade que achou que estava perdida, pinte o descanso com as cores do seu sorvete favorito; passe alguns minutos de uma tarde de sábado encarando o céu e se perguntando se aquela nuvem parece mais um poodle ou um fusca.
No mais:
Volte a brincar de ser quem você é quando só isso era suficiente.
Para ouvir:
A vida não é útil - Podcast Conselhos que você pediu (aqui a Bela Reis fala sobre a nossa relação com hobbies e atividades ditas úteis, a partir da leitura dos livros “O Ato Criativo” de Rick Rubin e “A vida não é útil” de Ailton Krenak)
Para ler:
Andar a pé - Henry David Thoreau (e se andar a pé, meio sem rumo, meio sem propósito fosse uma das melhores coisas que você pudesse fazer por si mesma? Spoiler: é.)
a newsletter toda o tema na minha última sessão de terapia. sinto que vou precisar de outra sessão pra falar de pontos que a news me acendeu ainda mais! obrigada por mais essa 💖
Nossa, que texto incrível, dialogou tão bem comigo. Eu precisava tanto dessa reflexão e não sabia. Muito obrigada por compartilhar!