Daniel gosta de vídeos de skate gravados com uma câmera modelo VX1000 e lente fisheye. Júlia adora adesivos secadores de espinha em formato de estrela. Branca se interessa muito por arte, a ponto de viajar só para estar mais em contato com ela. A cor favorita de Set é laranja. Anahi gosta de desenhar casas com carinhas.
Quando os olho, vejo em cada um deles um diferente mundo; como se fossem planetas com características próprias - das mais complexas às mais simples - orbitando em harmonia, principalmente em volta de si mesmos.
As minhas pessoas favoritas são aquelas que ostentam, muitas vezes na própria pele, as paixões e gostos que possuem. Aquelas que sabem, com detalhes, descrever como seria o seu dia perfeito.
Essas pessoas não são prisioneiras dos próprios interesses, elas se permitem navegar em outros mares, ouvir outras histórias, provar outros sabores. São abertas para o novo, para tudo aquilo que possa ser adicionado ao seu inventário de gostos.
Eu vivo cercada de coisinhas desde muito nova: brinquedos, retalhos que a minha vizinha que era costureira me dava, livros da Série Vagalume, meia dúzia de canetas gel. Um catálogo de objetos e, mais tarde, de interesses e preferências que foram construindo quem eu sou. Quinquilharias que fui juntando ao longo da vida, cacarecos que respondem boa parte das perguntas sobre mim.
Quando tudo faltava, lá estavam as bandas que eu gostava, as revistas que me entretinham e uma mala cheia de conceitos, ideias e assuntos que enchiam o meu peito de alguma esperança. Foi a partir desse repertório, inclusive, que descobri possibilidades que iam além da realidade onde eu estava inserida.
Ser uma fã de coisas também me tirou, de certa forma, da solidão.
Ao compartilhar esses interesses, fui descobrindo pessoas que gostavam das mesmas coisas e isso foi essencial na construção da minha identidade. Era (e continua sendo) como se eu fizesse parte de algo. Essas comunidades me faziam sentir menos sozinha a medida que me ajudavam a desenvolver a minha personalidade.
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Nessa fase onde tenho sido guiada pelas minhas paixões, tenho olhado para as coisas que gosto a procura de respostas. Pistas, atalhos. Qualquer coisa que me coloque em um caminho mais condizente com aquilo que acredito.
Abro as portas que dão acesso ao repertório que criei nesses 30 anos e dou de cara com estantes repletas de livros, sabores, músicas, lugares, filmes, cheiros e texturas que fazem de mim isso que me tornei.
A literatura e a música são, até hoje, as minhas principais companhias. Responsáveis por trazer conforto em dias difíceis, alegria em dobro nos dias bons e movimento nos dias tediosos. São também elas que criam perguntas e respondem tantas outras. São nascente e foz dos meus planos e sonhos.
Mas mesmo com essas certezas todas sobre o que gosto, vez ou outra ainda me pego distraída com coisas que não tem nada a ver comigo. O acúmulo de informações imensamente maior do que eu sou capaz de processar me devora antes do meio dia. Mal almocei e já engoli uma quantidade absurda de conteúdo, stories, vídeos de 15 segundos, a trend da vez.
Como separar então o que pode ser adicionado ao meu museu particular de grandes novidades e o que deve ser descartado? Como não mimetizar identidades de terceiros? Como absorver só aquilo que realmente vai de encontro com o que gosto?
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Ao assistir “Dias Perfeitos” fiquei muito encantada com o que vi, mas não sabia dizer exatamente o que havia me causado o famoso quentinho no coração.
Revendo, notei que o que mais me trouxe encanto foi o quão satisfeito e preenchido Hirayama sentia-se com a própria rotina, com sua coleção de fitas e a repetição dos mesmos hábitos semana após semana: trabalhar, ler, fotografar árvores, revelar as fotos, regar as plantas.
Repetição esta que pode até soar tediosa para alguns, mas que pra ele funcionava como um lembrete diário de que já possuía uma vida repleta de coisas de seu interesse e que isso era suficiente.
E é justamente esse exercício - de olhar para quem eu sou, o que gosto e o que já possuo, que me ajuda a criar filtros criteriosos quanto ao que não merece a minha atenção (o meu dinheiro, o meu tempo…). Gosto da ideia de ter desenvolvido preferências que expressem quem eu sou de maneira tão fiel e de como isso me mantém longe de ser corrompida por tantas influências externas (mesmo sendo uma pessoa cronicamente online).
Carregar com orgulho a minha pastinha cheia de referências, além de me salvar da mesmice ditada pelos algoritmos, me serve também como um lugar seguro: se tudo der errado (e dá muitas vezes) eu sempre terei para onde retornar - as minhas músicas, aos meus comfort movies, ao moletom da minha cor favorita e as pequenas alegrias que fazem com que a minha existência flutue mais do que pese.
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Manter o olhar atento a quem somos, ao mundo e a quem somos no mundo é a prática de se fazer presente com atenção e isso é muito difícil hoje em dia. A gente pula do Tiktok para o Instagram, lemos o pedaço de um livro enquanto ouvimos um podcast, falamos com um amigo enquanto lavamos louça… Vagando entre ambientes, pessoas e conteúdos sem estar realmente em nada. Como saber do que gostamos, de verdade, quando estamos sempre tão distraídos?
“Quem escreve presta atenção” diz a professora no curso de escrita que fiz recentemente. Concordo e complemento: inclusive em si mesmo.
Então, na intenção de parar de fugir de mim e da escrita (prática que é tão importante para a manutenção da minha lucidez), sentei no chão da sala, na parte onde bate sol na hora do almoço, e rascunhei tudo o que sei sobre os meus interesses e preferências.
E na tentativa de incentivar você a fazer o mesmo - prestar atenção em si e no que constitui a complexidade e a simplicidade de quem você é - compartilho parte do meu inventário de gostos:
Músicas que tem o contrabaixo bem marcado (inclusive, tenho uma playlist dedicada a elas);
Plantas com folhas grandes (monstera, ficus elastica, comigo-ninguém-pode);
Clementina (aquela laranja pequena, tipo uma mini mexerica);
Escrever à mão com caneta preta;
Uma salada com alface, rúcula, frango, farfalle, halloumi (ou queijo coalho), uva verde e parmigiano reggiano;
Brechós “semi-arrumados”: aqueles que não são perfeitamente organizados, mas também não tem 81kg de roupas empilhadas uma em cima da outra;
Livros em primeira pessoa, onde a protagonista/ narradora seja uma mulher;
Cama com muitos travesseiros (apesar de usar só 1 na hora de dormir);
Tops de malha canelada, camisetas 100% algodão e saias que batem no meio da minha canela;
Quando os meus cachorros deitam apoiados um no outro;
Café com gosto cítrico;
Falando em café, a combinação: um doce muito doce + café sem açúcar + água com gás;
Sair do mar, sentar na canga com o corpo molhado e afundar os pés na areia;
Folhetos de supermercado;
Sair do aeroporto em uma cidade que ainda não conheço.
Conforme envelheço, entendo que a parte mais relevante da nossa personalidade está nesse montante de peculiaridades sobre nós que vamos acumulando: gostos, interesses e manias que foram colhidos, construídos e mantidos ao longo do tempo.
Acho, inclusive, que isso se reflete também na relação com o outro: existe uma certa magia em estar com alguém que se conhece tão bem a ponto de permitir que a gente entre e explore o seu mundo particular.
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Sabe aquela banda que só você e mais 3 pessoas escutam?
Os filmes com os roteiros mais batidos, mas que você adora?
E o fato de você, em uma tarde de quarta-feira, ter se apaixonado por um tom de azul específico e, tempos depois, ter descoberto que foi um artista francês que o criou? E que desde então o mundo todo o conhece por Yves Klein Blue?
Aquilo tudo que você se envolve a ponto de perder a noção do tempo é o que te diferencia do resto. É bonito demais o seu gato ter o mesmo nome daquele escritor uruguaio.
Presta atenção no que faz os pelos dos seus braços levantarem-se. No que enche o seu peito de entusiasmo. Qual é o assunto que, quando você começa a falar, não consegue mais parar? Que livro conversa com o seu íntimo? Quais são as cores que você mais gosta de ver dançar no céu?
Presta atenção nas palavras que, quando aparecem na tela do seu celular, arrancam aquele sorrisinho do seu rosto. Fecha os olhos e descreva a sua festa de aniversário perfeita - quem são os convidados? E o cardápio? O bolo é de quê?
Convide a si mesma para uma boa conversa.
Para assistir:
High Fidelity (apesar de confusa com a vida, Zoë belíssima Kravitz sabe muito bem do que gosta quando se fala de música);
High Fidelity, Ego Strength, & Forming Identity Through Media (análise de como a mídia que a gente consome tem impacto nos nossos interesses e na construção da nossa identidade. Obs: o “High Fidelity” que ela cita é o filme de 2000, não a série de 2020 - mas que é bom também!)
nossa, mas eu precisava TANTO ler isso! me peguei tentando grifar as partes que mais me marcaram, igual no kindle kkkkkkkk
Amo seus textos! Me identifico muito, o que sou e o que busco.