Um Passo

Um Passo

Share this post

Um Passo
Um Passo
Maré boa

Maré boa

aceitar que, às vezes, a vida é boa sim.

Avatar de Tamires Correia
Tamires Correia
jun 04, 2025
∙ Pago
14

Share this post

Um Passo
Um Passo
Maré boa
4
1
Compartilhar
An image added by cosmos on Jul 11, 2024. May present: visual arts, illustration, image, art, {"woodblock print".
Arai, section of sheet no. 8 from the series "Cutout Pictures of the Tokaido (Tokaido harimaze zue)" - Utagawa Hiroshige | 1843–1854

“Estou feliz”, foi o súbito pensamento que me veio às 16h12 da quinta-feira da semana passada. Essa constatação interrompeu uma série de coisas que eu estava fazendo (tudo ao mesmo tempo, como sempre) e, quando me dei conta, gritei para o meu namorado que estava em outro cômodo: “daaaaani, eu tô feliz!”. Ao ouvir essas palavras se soltando dos meus lábios, ao vê-las de fora, tentei pegá-las de volta com a língua, mas era tarde demais. Estava dito.

*

Há dias que eu reparava que algo estranho subia e descia do meu corpo. Ignorei, imaginei que era um movimento involuntário, só mais um dos meus espasmos que nunca se justificam (não são sinal de mau presságio, nem de sorte súbita; são só arrepios que fazem meus ombros e minha cabeça balançarem, como os cachorros fazem para se enxugar). Mesmo com essa coisinha dentro de mim, continuei a viver - que é o que a gente faz quando não sabe o que está acontecendo.

Nas manhãs seguintes, parecia que a sorte havia sido inaugurado na minha rotina: o despertador tocou às 7h e eu acordei antes do segundo alarme anunciar 7h15. Não tropecei no cachorro que dorme ao pé da cama, não derrubei os óculos como faço toda manhã, e quando abri a janela, dei de cara com um céu cor de lavanda que não lembrava de ter visto nas últimas semanas. Achei que era um truque dos meus olhos recém abertos. Bocejei. Tomei água sem derrubar metade no pijama como é de costume. Fiz café. Tudo sem barulho - nem das buzinas dos carros na rua (o recurso preferido dos motoristas desse país, que as usam sem critério), sem o som da vizinha que todos os dias amaldiçoa o filho com palavras que ela mesma herdou. Abri o aplicativo do banco e o dinheiro do freela que fiz há 2 meses, finalmente, caiu.

Que sensação estranha é essa que o meu corpo tenta registrar e a minha mente ainda não sabe que nome dar? Será que as coisas estão… dando certo? Será que essa vontade de viver que, de repente, me apossou é a tal da… felicidade?

Tive medo de assumir que sim.

Uma vez que, assumindo que estou feliz, novos sentidos surgiriam: o sentimento de não merecimento, o sabor do <isso não é pra mim>, a habilidade de uma precognição particular que, arrogante, tinha certeza que isso era só uma ilusão passageira. Saber que não vai durar. Pressentir que essa alegria, na verdade, não existe.

Mas o mundo, nessa sequência de dias, parecia realmente não querer me punir. Uma sucessão de milagres domésticos continuaram acontecendo: a casa cheirava a roupa limpa, achei cinco euros enquanto passeava os cachorros, nenhuma espinha apareceu no meu queixo. Nenhuma dor no joelho (ok, alguma dor no joelho). As plantas estavam verdes e sem as cochonilhas filhas da puta que tomavam conta das folhas há semanas. Mesmo com alguns infortúnios, eu continuava carregando o ímpeto genuíno de acreditar que está tudo bem. Ou que, pelo menos, ia ficar. Que as coisas se ajeitariam de alguma forma.

E a coisa que se movimentava dentro de mim não dava trégua. Fazia com que eu sentisse vontade de rir do nada, esvaziava a minha cabeça, soltava a minha mandíbula. Até o meu olho esquerdo parou de tremer. Uma inquietação nova, uma alegria clandestina, como se a felicidade estivesse cometendo um delito e eu fosse sua cúmplice. Era como rir baixinho num velório.

Ainda assim, eu desconfiava dessa alegria insistente.

Eu, que sempre caminhei com o peso da antecipação nas costas, me sentia nua e vulnerável diante da leveza. Não sabia existir sem o peso. Para alguém vindo de um lugar indeterminado com destino à lugar nenhum, qualquer movimento parecido com <dançar> parecia um erro. Tinha medo de aceitar a felicidade como minha, com receio desse movimento se tornar um retorno ao estado de merda, esse sim, familiar.

É difícil habitar o instante quando se viveu esperando que ele termine.

Esta publicação é para assinantes pagos.

Already a paid subscriber? Entrar
© 2025 Tamires Correia
Privacidade ∙ Termos ∙ Aviso de coleta
Comece a escreverObtenha o App
Substack é o lar da grande cultura

Compartilhar