As únicas companhias eram os próprios brinquedos.
Ao ver, pela primeira vez, uma mancha vermelha na calcinha, gritar pela mãe não foi uma opção. Não porque não a tivesse mais, muito menos pela falta de vontade da mesma em ajudar. Só que fazer alguém, que já lidava com tantos problemas difíceis, parar tudo para pegar um absorvente no armário do banheiro e ensiná-la a usar parecia bobagem.
Sempre existiu dificuldades maiores a serem superadas pelos pais, pelos amigos, pelos professores, pelos namorados. Nunca se viu muito digna de parar o curso do mundo para perguntar se alguém podia dividir com ela o peso que carregava nas costas.
Quem era ela para pedir ajuda em questões tão pequenas?
Cresceu, viu o corpo tomando diferentes formas, mudou o cenário da vida, abandonou sonhos e traçou novas metas. Tudo sem pedir ajuda. Não porque não tivesse a quem recorrer, mas porque não conseguia abrir a boca e dizer: me ajuda; suas mãos também eram incapazes de digitar preciso de você e enviar até que a notificação aparecesse do outro lado.
Durante um tempo, encarou isso com uma proteção disfarçada de arrogância. Conseguir sozinha, não precisar de ninguém. Depois, virou algo corriqueiro: comprar leite e ovos, trabalhar naquele relatório, lavar o banheiro, não pedir ajuda.
Até que começou a doer a medida que a vida ganhava níveis de dificuldade cada vez maiores. Uma substância azeda corria no espaço entre o seu peito e o seu estômago ao imaginar alguém parando tudo para lhe ajudar. Não saber pedir ajuda. Sentir vergonha, medo.
A terapia resolveu isso em partes.
As leituras, a intimidade com algumas pessoas e o próprio amadurecimento também ajudaram um pouco. Mas no fundo, naquele par de segundos antes de pegar no sono, a hesitação em gritar por socorro mesmo quando a situação pedia ainda permanecia.
Existem algumas coisas sobre nós que parecem naturais.
Sempre estiveram aqui.
Até pararmos e as observarmos com um pouquinho mais de atenção.
Com quase 10 anos de terapia e muitos de escrita significante (termo usado pela Cris Lisbôa, professora de escrita do curso que tenho feito, que define o termo como “reagir por escrito”, ou seja, colocar no papel tudo aquilo que esteja pensando e sentindo no momento), tomei gosto por me auto investigar.
Por que eu sinto o que sinto?
Por que lidar com determinada coisa é tão difícil pra mim?
Mas apesar disso, não fui eu que notei essa angústia em não conseguir pedir ajuda.
Lembro de algum amigo, a minha tia e/ou o meu namorado dizerem “eu podia ter te ajudado, por que não me pediu?” ao me verem desesperadamente aflita e/ou ansiosa quando alguma situação apertava e eu não conseguia lidar sozinha. Eu mal conseguia criar uma resposta, o meu cérebro simplesmente não entendia que eu podia contar com alguém.
Com algum esforço, acabei descobrindo a fonte disso. Sim, está na infância. Sim, está em certa negligência por parte dos meus pais.
De alguma forma, cresci entendendo que procurar todas as respostas sozinha e causar o mínimo de problemas para os outros era importantíssimo. Não atrapalhar ninguém com os meus dramas. Me virar sozinha.
Outro reflexo disso pode ser visto no meu ego que, de um jeito meio triste, acreditou que não precisava do apoio de ninguém. Há também a necessidade de ter um controle absoluto: quando incluo outras pessoas em determinadas situações, abro espaço para que elas interfiram nos meus processos, o que me força a ter que sair do comando das coisas.
Isso tudo resultou em uma adulta hiperindependente; o que pode até parecer bom em um primeiro momento. Mas que, na verdade, revela uma pessoa que entra em pânico até mesmo quando alguém oferece ajuda.
Ser colocada nesse lugar de vulnerabilidade, de baixar a guarda e responder “sim, eu aceito” apavora. É como se eu deixasse a mostra, sem querer, o fato de não ter conseguido com as minhas próprias mãos. O familiar medo da insuficiência.
*
Mas hoje, diferente da adolescente que se orgulhava de não precisar de ninguém, me vejo acanhada e frágil. Me sinto meio ridícula quando percebo que estou exausta de tanto lutar sozinha, quando poderia simplesmente ter recorrido a alguém.
E é difícil sair disso quando tudo ao nosso redor incentiva lógicas de individualização extremas, numa exaltação ao self-made - a consagração daqueles que conseguiram chegar lá sozinhos. Nesse cenário, ser alguém que pede ajuda, que assume que precisa de alguém soa como uma fraqueza.
A dificuldade de ver no outro um espaço seguro onde os meus desafios ganham aliados me isola.
Porque acabo sentindo que preciso me afastar de tudo e todos para encontrar uma solução, sendo esse afastamento primeiramente interno, já que a procura de respostas unicamente dentro de mim me joga num poço escuro e sair dele é quase impossível. Um ciclo completamente irracional que, apesar de ciente, não me torna menos vítima dele.
Contudo, a vida tem sido generosa com o meu amadurecimento.
Não acho que seja preciso sofrer para crescer, mas é verdade que a dor ensina. Me orgulho de estar me tornando capaz de olhar pra mim com carinho e clareza. Carinho porque a ternura é bem-vinda e só com ela as coisas são reais; clareza porque conheço a minha vocação para o drama e preciso de alguma praticidade para lidar com pedaços não tão simpáticos de mim.
Me alienar nesse lugar solitário não foi necessariamente uma escolha. Alguns pesos são colocados na nossa mala sem que a gente perceba; quando demos conta, estamos arrastando um fardo sem necessidade, reproduzindo comportamentos e reagindo de formas que não estão de acordo com o que acreditamos.
Por isso, é tão importante prestar atenção ao “barulhinho que o tempo no seu peito faz”, isto é, ter atenção ao que acontece dentro de nós. Isso, além de fazer com que a gente acenda luzes em lugares problemáticos da nossa identidade, nos ajuda a também iluminar o outro.
Afinal, ninguém é capaz de abrir mão de suas estratégias de sobrevivência sem a ajuda constante de um conjunto de mãos estendidas, prontas para romper com a nossa escuridão particular.
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Ainda estou aprendendo a separar quem eu sou do papel cruel que me calhou: o de quem não pede ajuda.
Sigo tentando abrir mão do controle e deixando as pessoas me ajudarem. É difícil porque programei meu cérebro para fazer exatamente o oposto por três décadas, mas quero ser capaz de tratar isso - ter boas pessoas ao meu lado, dispostas a serem pilares quando tudo desmorona - como um privilégio.
Pois é, o tal do “ombro pra chorar depois do fim do mundo” muda tudo.
É revolucionário se libertar da necessidade de vencer sozinho. Pedir ajuda é iniciar, criar e manter uma comunidade, um empreendimento coletivo: você me ajuda, eu te ajudo e juntas ajudamos muitas outras. E essa rede, que se forma fio a fio, é a definição mais próxima do que hoje entendo como vida.
“A Amizade” do Fundo de Quintal me veio à cabeça enquanto escrevia a news de hoje.
Essa música faz parte da trilha sonora da minha infância. Meu pai a cantava batucando na caixinha de fósforo enquanto fazia o almoço de domingo. Lembro de gostar muito dessa cena, achava bonito vê-lo tão à vontade.
Infelizmente, demorei muito para enxergá-lo como meu amigo; mesmo ele estando sempre ali, completamente disponível para tudo o que eu precisasse. Ainda assim, eu não me sentia no direito de pedir nada a ele, já tão cansado de dores que colocaram a sua saúde (física e mental) em risco.
Felizmente, eu ainda posso fazer isso: invento sempre um jeito de lhe pedir ajuda. Peço várias vezes a mesma receita de farofa, só pra mostrar que preciso dele. Pergunto detalhes, me faço de desentendida. Tudo pra fazê-lo me dar algum suporte - o mesmo que eu fingi não precisar durante 30 anos.
Valeu por você existir, amigo.
Aprender a pedir ajuda era (ainda é. Quem eu quero enganar?) um dos meus maiores desafios. Me despir da vaidade de quem acha que dá conta de tudo sozinha, abraçar a vulnerabilidade de me mostrar carente de apoio, aceitar o outro como abrigo.
Mas esses passos desajeitados fazem parte de um caminho honesto, uma trajetória sensível de quem está disposta a baixar a guarda e ouvir com respeito quem vem de coração aberto.
Por isso, o texto de hoje é para reforçar: quem tem um amigo, tem tudo.
Obrigada por serem uma das proteções mais eficazes contra as invasões do mundo.
*
No mais, fica a dica (ainda se fala isso? sei lá, sou millennial): para de ser besta e pede ajuda. E se for possível, oferece também.
Autoconhecimento é tudo, né? Não é fácil, dói, a gente acessa camadas e mais camadas de coisas que a gente nem sabia que estavam ali com a gente a vida toda, mas parece que quanto mais a gente mergulha, mais cristalina vai ficando a água. Lindo texto!
Belíssimo, sensível e verdadeiro! Me tirou lágrimas sinceras 💖 Acho incrivel e tão bom que você consegue verbalizar algumas coisas que eu sinto mas não conseguia organizar.