A temida autorresponsabilidade
Há uma evidente violência em exigir que o indivíduo assuma, sozinho, as consequências e os possíveis impactos do que faz ou deixa de fazer. Nem tudo se resolve com escolhas individuais, e há estruturas maiores que nos moldam antes mesmo de termos consciência delas. A pobreza que, muitas vezes, se reflete em ignorância e negligência, os preconceitos, as limitações geográficas: forças que ultrapassam a vontade pessoal.
Dizem que a autonomia é a capacidade de se autogovernar, de decidir por si, mas me pergunto a quem <realmente> foi dada a opção de encarar o mundo como um campo aberto, com possibilidade de caminhar em qualquer direção. A mim não foi.
Não é difícil notar que algumas vidas se desenrolam com mais suavidade enquanto outras lutam para emergir de um ciclo difícil que não criaram. E, ainda assim, espera-se que todos avancemos com a mesma leveza. Dizer a alguém que basta "se esforçar" para mudar os próprios cenários é ignorar o quanto certos caminhos são bloqueados desde o início. Não se trata de negar a própria responsabilidade, mas de compreender que há limites para o que podemos mudar sozinhos.
Posso nomear os vazios, entender como se formaram, cuidar para que não me devorem inteira. Mas há limites para o que cabe em minhas mãos. E é isso que o discurso da auto responsabilidade ignora: os contextos em que existimos, as forças que nos atravessam antes que possamos revidar. Como se estivéssemos todos em pé de igualdade, com os mesmos recursos emocionais e materiais para <re>erguer as próprias ruínas.
Penso em tudo o que foi colocado em meu corpo antes que eu tivesse qualquer poder de escolha. As mãos de homens que não pedi, as palavras que não compreendi quando criança, o silêncio em torno de coisas que nunca deveriam ter acontecido. O peso de uma memória que insiste em sobreviver, mesmo quando tento enterrá-la sob camadas de racionalização. Não posso dizer que fui responsável por essas coisas, mas, de alguma forma, esperam que eu o seja pelas consequências que deixaram em mim. Como se bastasse querer ficar bem para que as cicatrizes parassem de doer.
Aos meus primos e ao meu irmão, sempre foi garantida a opção de não se responsabilizar pelos próprios atos. Havia (ainda há?) uma rede de proteção em volta deles, sempre disponível para assegurar que todo e qualquer erro fosse não só acobertado, mas sanado e, melhor, esquecido. A mim nunca foi permitido o mesmo: eu era culpada das minhas merdas e tinha que corrigi-las. Se vira.
Aprendi cedo que as consequências dos meus atos eram um problema exclusivamente meu. Um compromisso silencioso que faço comigo mesma: não fugir, não me esconder atrás de desculpas, não apontar dedos. Se a vida dói, é porque algo em mim precisa mudar. Se falho, é porque não me esforcei o suficiente. Porque não me posicionei. Porque não virei o jogo enquanto havia tempo. Um reforço constante: não terceirizar a responsabilidade pelas minhas próprias decisões. Uma lógica exaustiva. Porque, quando as coisas desmoronam, eu nunca olho para fora. Olho para mim.
O que fiz de errado?
Onde falhei?
*
Observo pessoas que acreditam que as coisas apenas acontecem com elas. Que a vida as leva como corpos sem vontade própria; vejo como elas aceitam seus destinos como se fossem sentenças inevitáveis. Será que elas se agarram a essa ideia porque é mais confortável? Porque se o mundo as faz mal, se pessoas as ferem, se elas falham, nunca é culpa delas. É o ambiente. É o passado. São os outros. Nunca elas próprias. Diferente delas, eu assumo tudo para mim. Carrego a culpa como se fosse a única coisa que me pertence. E, no fundo, não sei o que é pior: acreditar que não tenho poder algum ou acreditar que tenho poder sobre tudo. Ambos os extremos são uma armadilha.
Estar ciente das limitações estruturais de um mundo que não foi feito para ser gentil comigo me fez questionar o conceito de autorresponsabilidade. Até que ponto realmente posso mudar as coisas? O que está, de fato, ao meu alcance? Sei que há limites, mas também há pequenas margens de manobra que não posso ignorar.
*
Sim, há coisas que são minhas.
Permanecer ou ir embora. Palavras que preferi não dizer e as que gritei bem alto. Minha incapacidade de me perdoar. Tudo o que procrastino por medo de dar certo.
Assumir a responsabilidade pelas minhas escolhas me dá um estranho alívio — pelo menos, isso é meu. Por mais desastrosa que seja, essa é a minha vida, esses são os resultados das minhas decisões. Eu estive lá em cada uma delas.
A autorresponsabilidade assusta porque significa perder as desculpas. Quando assumo certa autonomia, deixo de distribuir justificativas para os meus erros e inauguro a aceitação de que as minhas escolhas podem se tornar grandes festas com globo de espelhos giratório ou um velório com café ruim e bolacha água e sal.
Percebo que posso escolher me afastar do que me machuca. Posso pedir ajuda. Posso mudar de ideia – ainda que lentamente, ainda que com medo. E quando entendo isso, não há mais volta. Me dou conta de que continuar onde estou é, em parte, uma decisão minha.
Sinto tudo isso tudo me atravessando, o que talvez explique o <estranho> quando menciono <alívio>. Porque, em alguns dias, sinto que o peso dessa autonomia pousa com mais força nas minhas decisões "erradas", como se eu pudesse, por um instante, controlar o tempo, voltar atrás e refazê-las.
Não sei o que fazer com o que fazem comigo.
Não sei o que fazer com que eu mesma faço comigo.
*
Reconheço que há coisas que me ultrapassam — e que, ainda assim, caem no meu colo como se fossem fardos escolhidos por mim. Como se a estrutura invisível que regula quem sobe e quem estagna pudesse ser desmontada por uma única pessoa.
Não pode.
Não por mim.
Não por você.
Me pergunto então até que ponto a autorresponsabilidade vira uma arapuca silenciosa. Porque, no fim, ninguém se salva sozinho. E, no entanto, ainda é persistente o discurso de que basta querer. Mas querer o quê? Desmontar com mãos já em dor paredes que não construí?
A vida não acontece em um vácuo e o preço de um erro não é o mesmo para todos. Existe uma estrutura invisível, mas palpável, que define quem pode falhar e ser perdoado e quem carrega seus tropeços como um peso permanente.
Ainda assim, preciso reconhecer os espaços em que minha vontade pode se mover. Não como uma aceitação passiva, mas como um ato de recusa. Recuso ser reduzida à soma do que me fizeram. Responsabilizo-me pelo que posso mudar, mas não aceito carregar sozinha o peso de um mundo que nunca foi neutro. Há coisas que não são apenas minhas, e fingir o contrário seria perpetuar uma mentira confortável para quem não precisa suportá-la. E eu estou cansada de tornar as coisas fáceis para quem se dedica a complicar tudo pra mim.
*
É ingênuo – e cruel – acreditar que a responsabilidade individual basta. Não basta. Nunca bastou. O mundo não se torna justo porque eu quero, e há um cansaço acumulado em tentar mover estruturas que foram projetadas para não ceder.
Sinto a dor da injustiça e sei que é legítima, mas, depois, preciso agir. Porque, no fim, poucas coisas vão se dobrar aos meus desejos — e carregar essa ilusão só me mantém presa a dores que não precisam durar para sempre. Há uma espécie de trégua em entender que, por mais que sistemas rígidos me cerquem, existem frestas onde minha vontade pode se mover. E eu me movo.
Às vezes, escolho me apegar a esses movimentos quase imperceptíveis.
Criar algo do zero, como um livro, é a minha maneira silenciosa de me afirmar contra um mundo que insiste em reduzir as possibilidades. Ninguém pode roubar de mim o direito de nomear as cicatrizes. Escrever é me recusar a ser só efeito das coisas. Não posso desmanchar as forças que me moldaram, mas posso decidir como quero devolvê-las ao mundo. Há poder nisso. Pequeno, frágil – mas há.
Libertador e avassalador.
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Para assistir:
Worst person in the world (como nossas decisões, mesmo as mais banais, moldam nosso destino, e como a falta de responsabilidade sobre elas pode levar a um ciclo de insatisfação e arrependimento).
senti muito esse texto. percebi recentemente, o quanto fui moldada para ser flexível. naquela vibe "se nada muda, mude você" e eu mudo toda hora. mudo quando não precisa, sem resistência, meu estado basal é de adaptação eterna. quando eu poderia também me fazer rocha para que as coisas também mudem ao meu redor e não só o oposto. é exaustivo essa falsa sensação de que posso transformar todo o limão em limonada. se adaptar toda hora, contornar tudo com graça ou com ódio demanda muita energia. pra variar, quero pegar essa energia e usar (ou desperdiçar) fixando em algo, uma ideia, uma crença, um desejo. afinal, se eu to sempre pronta pra mudar tudo pelas circunstancias, onde fica meu querer nisso tudo? tudo dói, sabe. mas pode doer por outros motivos.. ou por algo melhor. obrigada por esse texto, me fez pensar!
Wow!!!! Me li aqui, pois essa angustia me consome sempre. O extremo da autorresponsabilidade me soa até prepotente. Me culpar de tudo tem um quê de egocentrismo, mas quis (quero!) tanto fugir dos padrões tóxicos de quem, enquanto eu crescia, nunca se responsabilizou por nada! Obrigada por este texto e por compartilhar essa angústia com tanta beleza!