Exausta de tanto me cuidar 😩
O perigo do autocuidado como mais um item na nossa lista de tarefas.
Tentar ser “that girl” tem me deixado exausta.
Mais um termo em inglês que nasceu no Tiktok, That Girl é uma persona feminina totalmente focada em se cuidar: levanta às 5 da manhã, medita, toma smoothies, escreve em seu diário (journaling), come apenas comida saudável, vai à academia todos os dias, nunca pula um passo na skincare e tem sucesso de várias maneiras - tudo muito aesthetic, claro. Inclusive, no Tiktok e no Pinterest é possível encontrar muito conteúdo pra te inspirar e te ajudar a também ser uma that girl.
Mas antes que você ache a ideia boa (em teoria até é) e saia salvando mil vídeos de rotinas pseudo saudáveis, me deixa te contar uma coisa: eu ando tentando seguir essa estrutura de autocuidado e só tenho ficado… exausta.
Sim, nos últimos meses tenho participado voluntariamente desse círculo tosco do capitalismo tardio e, como resultado, tenho me sentido esgotada. Além de deprimida por não conseguir alcançar e manter um padrão de bem-estar que tenta me vender soluções prontas através de produtos caros que prometem me fazer sentir melhor.
Começando do começo
Em Agosto do ano passado tomei a decisão de melhorar alguns pontos importantes na minha saúde física e mental: fui ao psiquiatra, à nutricionista, me inscrevi numa academia, parei de beber álcool, comecei a dormir e a acordar mais cedo, entre outros bons hábitos. Até aí tudo bem.
Acontece que acabei por cair no maravilhoso mundo do #selfcare na internet - o que, de primeira, me pareceu incrível. Era como se eu tivesse encontrado a minha turma; afinal, como aquelas pessoas, eu também estava buscando me cuidar e dedicando tempo a mim mesma. Como uma ansiosa diagnosticada, eu finalmente tinha achado solução para a minha inquietação e estava priorizando o meu bem-estar pessoal.
Até que comecei a me sentir sobrecarregada de tanto me cuidar???
O que, no início, parecia até um ato radical em prol de mim mesma, começou a se tornar uma lista de afazeres gigantesca que, quando não cumprida, me fazia sentir culpa. Eu estava numa rotina engessada, sem espaço na agenda para um jantar com as amigas ou o cinema com o namorado no meio da semana porque ia sair da dieta ou ia chegar tarde demais em casa, o que atrapalharia acordar cedo no dia seguinte, perder o treino, não conseguir ler, não conseguir escrever meus pensamentos pela manhã antes de começar a trabalhar. Ufa!
E consumindo esse tipo de conteúdo com muita frequência, fui desenvolvendo uma visão perfeccionista e metódica daquilo que era suposto ser bom pra mim. E a busca pelo bem-estar se tornou uma maratona rumo a altos padrões e, como consequência, eu me auto punia por não conseguir sempre alcançá-los. De repente, não havia flexibilidade, o que foi me deixando ainda mais propensa à ansiedade e hipervigilância.
Proibida de escorregar em meu próprio caminho para atender aos meus próprios padrões super exigentes.
E quando uma rotina altamente regrada têm como objetivo ajudar a ter mais clareza e segurança sobre nós mesmos, acaba sendo chocante notar que, mesmo fazendo tudo “certinho”, a ansiedade e a insatisfação com os nossos corpos não desaparece. E a culpa por não alcançar esses padrões cai no nosso colo. Assim, a nossa incapacidade de ser that girl é agravada, supostamente, pela nossa falta de compromisso com nós mesmos. O nosso perfeccionismo, promovido pela indústria do bem-estar, torna-se uma falha pessoal.
Ah e a minha busca pelo autocuidado se tornou também uma lista de compras, afinal pra ser uma that girl que se cuida de verdade é preciso ter aquele sérum de 200€, legging e top combinandinho da marca X e por aí vai.
Em resumo, o capitalismo transformou o bem-estar em um produto vendido em embalagem com design aesthetic e em uma interminável lista de tarefas que ✨ só depende de você ✨.
E, quanto mais fardos acumulamos - trabalho, cachorros, relacionamentos, vida social, empréstimo do FIES, o varal que se soltou, transtorno de ansiedade, box do banheiro que quebrou, bruxismo (ok, tô sendo muito específica), mais somos incitados a ficar bem por meio de ainda mais esforço individual e sempre atrelado ao consumo. Assim, o que deveria nos ajudar se torna mais uma obrigação e mais um produto a se comprar.
E nem preciso falar que, para nós mulheres, o buraco é mais embaixo, né?
Afinal, o termo não é that GIRL atoa. A indústria faz à nós, mulheres, a promessa de que vamos conseguir administrar o caos que governa as nossas vidas se seguirmos uma rotina bem planejada: comer direito, fazer exercícios, meditar e depois comprar ou fazer uma lista de tarefas. Como recompensa, temos a promessa de receber flexibilidade física, clareza mental, corpo mais tonificado, pele sem manchas… E perseguir esses atributos sob o disfarce do bem-estar nos é vendido como a chave para desbloquear uma vida livre de inseguranças e ansiedades.
Tudo sempre focado no indivíduo
A luz no fim do túnel do autocuidado é um eu feliz e contente, aiai, todo capaz de lidar sozinho com o estresse da vida com facilidade, assoviando e chupando cana, na boa, na moralzinha. É uma versão ideal de si mesmo que pode ser alcançada simplesmente por meio da disciplina individual, foco, força e fé.
E, embora muitas das soluções apresentadas pela indústria do bem-estar possam ser individualmente benéficas, elas fazem parte de um complexo mais amplo que está nos vendendo soluções para os nossos problemas, reais e imaginários. Ainda que a gente nem tenha percebido que eles existem. E não se preocupe: o capitalismo vai te convencer e garantir que você tenha esses problemas. Afinal, a gente só compra soluções para problemas que acreditamos que temos, certo?
A radical ideia de se cuidar sem precisar comprar um conjuntinho Lululemon, uma garrafa Stanley, um sérum Skinceuticals e um Apple Watch
Se você é um leitor de longa data dessa newsletter lançada há pouco mais de 1 mês (e se não é, pode ler os textos anteriores aqui), já sabe que eu não sou de bancar a coach e dar solução pronta para nada. Inclusive, sou do time que acredita que não existe solução fácil para problema difícil.
Mas, por outro lado, acho meio pessimista levantar essa problematização sem dar, pelo menos, uma luzinha do que possa ser um caminho alternativo para continuar se cuidando sem cair no papo neoliberal de que o bem-estar só é alcançado por mérito e muito esforço individual. Então, bora:
1. Pensar o descanso como um direito e algo necessário já é o primeiro passo
Um dos possíveis meios de continuar no corre do autocuidado é inserir o descanso como protagonista do nosso processo. O autocuidado não precisa ser produtivo e o nosso valor próprio não está atrelado a quantidade de coisas que a gente faz em um dia (ainda que seja, em teoria, em prol de nós mesmos).
Criar espaços (na nossa cabeça e na nossa agenda) é necessário e até urgente para nos tornarmos capazes de processar direitinho tudo o que acontece com a gente todos os dias, o turbilhão de informações e conteúdos que recebemos (querendo ou não).
Resumindo: ficar de boa também é se cuidar.
2. Melhorar a própria vida torna-se parte de melhorar a vida dos outros
O risco de promover o autocuidado individual como uma solução para a ansiedade é que a gente fica isolado em uma luta fútil para resolver o nossos próprios problemas invés de mudar coletivamente os sistemas que nos causam danos.
Por isso, a medida que a gente toma conta da nossa própria vidinha, é importante entender que para cuidar de si, é necessário também cuidar do todo e do outro.
“E se a gente ampliasse o nosso olhar e começasse a pensar no bem-estar coletivo como origem do bem-estar individual? Afinal, é possível sentir plenitude no meio do caos? Será que sentir que ajudamos alguém ou alguma causa que acreditamos não nos traria mais felicidade e bem-estar?”
O cuidado coletivo pode ser compreendido como um ato político, que fomenta e fortalece espaços, medidas e ambientes seguros para todo mundo. As possibilidades dos cuidados coletivos incluem: conhecimento e acesso à rede de saúde e apoio psicossocial; medidas que estimulem e promovam a saúde física; apoio à luta por melhores condições de trabalho; democratização do acesso à educação e etc.
Individualmente, até é possível encontrar formas de lidar com o estresse, a ansiedade e o medo, mas é no coletivo que a gente se fortalece e promove a saúde fisica e mental para mais pessoas. Com a melhora graduativa nos ambientes que circulamos, consequentemente, há melhora nas nossas pespectivas individuais.
3. Se cuidar com o que você já tem
É tentador, eu sei. Em 15 minutos de Tiktok eu também fico morrendo de vontade de comprar todo o kit pra ser That Girl, mas nenhum desses produtos vai fazer a gente se sentir menos miserável diminuir a nossa ansiedade e resolver os nossos problemas.
Dá para continuar se cuidando, fazendo exercícios físicos, terapia, descansando e comendo direitinho sem estourar o limite do cartão. Associar o nosso bem-estar ao consumo é uma bola de neve que nunca terá fim, porque sempre vão existir novos produtos e novas tendências, e o objetivo deles é fazer com que a gente nunca pare de comprar.
Além disso, é importante também ampliar as nossas definições de autocuidado e reforçar que, em boa parte do tempo, é um trabalho de dentro para fora - se acolher, se permitir ter os mais diversos sentimentos (inclusive os ruins, não foge deles não que é pior), abraçar a vulnerabilidade e enfiar na cabeça que rotina regrada nenhuma nos protege de inúmeras coisas que não estão no nosso controle é essencial para manter a cabeça minimamente no lugar.
E digo tudo isso como um lembrete pra eu mesma não esquecer. Nosso corpo é político e assumir isso é uma grande e maravilhosa responsabilidade. Vamo se cuidar sem nos isolar e nos alienar. Combinado? 🤜🏽🤛🏽
Chega de conteúdo, pessoa!
Justamente por pregar a calma e o descanso acima de tudo nessa news, eu não ia sugerir nada (até porque se você chegou até aqui é porque já leu esse textão todo). Maaaaas, recentemente vi esse doc na Netflix e acho que se encaixa um pouquinho no que falamos hoje:
Stutz - uma conversa entre Jonah Hill e o seu psiquiatra Phil Stutz
Li e concordei com tudo, estive nessa mesma situação e me via completamente frustrada pelo passo a passo mostrado não trazer o resultado esperado.
Lembrei também de uma música do Frank Ocean, na qual levo como mantra, "Be Yourself" na qual basicamente a mãe dele diz numa ligação que ele precisa se aceitar como é e confiar em suas decisões.
Hoje completamente exausta de tudo, me vejo num mundo mais "minimalista" no qual me encaixei e me sinto satisfeita.
Obrigada pelas palavras, ansiosa pelas próximas!
Ps: muito boa a dica de doc!
"é sobre isso!". E pensar que se a gente adentrar ainda mais nas discussões, todo esse discurso que o capitalismo instaura juntamente com o machismo e liberalismo, entedemos que, atualmente há milhares de pessoas que estão passando fome, e a maior preocupação individualista de promoção de saúde é "seja saudável, faça exercícios todos os dias, compre tal e tal coisa para ficar bem...". É bizarro como tudo é distorcido e nos coloca nesse lugar de termos que estar 100% do tempo produzindo -seja autocuidado, seja trabalho...- e a pergunta é, como as pessoas irão ter rotinas de autocuidado se estão trabalhando mais de 12 horas por dia e ainda sem saber se vai ter o que comer no próximo dia. Como você traz, esta luta -como todas- precisa ser coletiva e consciente.