“Apago do meu mapa mental aquilo que me machuca. Lugares onde tropecei, em que caí, ou fui golpeada, ferida, e onde senti dor — esses lugares simplesmente não existem mais. Isso significa que apaguei algumas grandes cidades e uma província inteira. Talvez um dia aconteça de eu apagar todo um país.”
A tatuagem de uma lata de sardinha no meu braço esquerdo tem uma data: 19/06/2018. Marca o dia em que Lisboa entrou pela porta da frente da minha vida, não como visita, mas como território novo onde precisei reaprender a ser. Lembro de seguir com os olhos as lâmpadas acesas dos postes até que desaparecessem e virassem estrelas numa imensidão escura. Quase doze horas depois, abri a janelinha do Boeing 777 e vi os telhados e as antenas. Fechei os olhos, depois os abri de novo. Foi quando percebi que o mundo tinha saltado de um lugar para outro.
Naquele dia, com o calor abafado de junho grudando na pele, eu me sentia recém-nascida, desembarcando numa cidade que cheirava a promessas, a mar e a incertezas. O aeroporto estava abarrotado de gente, e eu, como tantas outras, chegava ali para ficar. Esperando por mim estava a razão da minha vinda com dois pastéis de nata na mão. “É aqui a nossa casa agora”, ele disse com um beijo.
Lisboa, em 2018, me pareceu gentil. E ainda se deixava habitar com mais facilidade. Ou talvez eu estivesse tão aberta à mudança, tão disposta a me sentir acolhida, que preferi ver doçura até onde já havia aspereza. De lá para cá, muita coisa mudou: a cidade ficou mais dura e mais fria; eu também mudei: me tornei mais introspectiva, mais destemida, mais séria. Amadureci. No início, ao acordar nessa atmosfera ainda desconhecida, pensava que estava em casa. Aquela, dos meus pais. Foi estranho até me habituar e transformar em lar as paredes do minúsculo primeiro apartamento que alugamos. Com o tempo, aprendi a desconfiar, a ouvir com mais atenção, a dizer não com mais firmeza e o principal: a me defender. Cresci e me tornei alguém que aprendeu a sobreviver mesmo perdendo um pouco do borogodó.
“Logo depois de chegar aqui, ela começou a ter crises de uma estranha saudade. Estranha, porque tinha a ver com coisas demasiado banais para provocar saudades (…) Depois, com o tempo, essa saudade foi absorvida pela nova terra como leite derramado e não sobrou nenhum vestígio dela.”
Viver sete anos fora do país onde nasci é habitar uma espécie de <suspensão>, como uma linha que não encosta nem no chão de onde saiu, nem no novo chão que tenta se firmar. É um intervalo constante entre o que se foi e o que nunca se chega a ser completamente.
No Brasil, me sinto estrangeira da inocência que perdi. Em Portugal, ainda sou estrangeira de um pertencimento que me escapa sempre que me pedem o passaporte, sempre que reduzem meu idioma a “brasileiro”, como se fosse um dialeto menor, uma versão desajeitada do que chamam de língua mãe. Mal sabem que isso é o maior elogio que um colonizado pode receber: que a língua imposta, à força, tenha sido torcida, rebatizada, reinventada com tanto ritmo e tanto corpo que já não se pareça com a violência que a originou.
Incorporei ao meu vocabulário os “pois”, “telemóvel”, “casa de banho”, “autocarro” e afins. Chamo trem de comboio, xícara de chávena, abajur de candeeiro. Me adaptei até o limite do que é possível sem desaparecer por completo. Mais do que isso exigiria o apagamento de um mapa inteiro: com rios e árvores de nomes indígenas, com cheiro de manga e feijoada, com o samba que vinha da cozinha do meu pai. Seria abrir mão do meu sotaque, esse que vem de uma cidade entre campos e montanhas, entre a capital e o litoral. Eles agora dizem que só me aceitam se for assim: totalmente adaptada. Totalmente moldada a um imaginário nacional que nem eles próprios habitam. Mas ainda que eu cedesse, e não cederei, o que fariam com o meu corpo? Com o meu tom de pele, que denuncia antes mesmo que eu fale? Com os meus traços, a minha boca, o meu cabelo?

Hoje, quando atravesso Lisboa, começo a entender o motivo pelo qual um sentimento de alienação tem crescido em mim, mesmo quando eu deveria me sentir mais à vontade do que nunca, afinal são 7 anos enfrentando essas ladeiras. É uma cidade completamente diferente, que lembra muito pouco aquela que eu ainda carrego no coração - essa última mais parecida com a versão de quando cheguei. Quase já não há nada que evoque qualquer lembrança dessa Lisboa do verão de 2018, nem dela, nem de mim. Poucas coisas aqui me parecem familiares. Os prédios pesados demais, as ruas estreitas demais, as portas robustas demais, carros demais, tudo soterrado por uma gentrificação cuja culpa não é de gente como eu. Essas pessoas tratam este país como um playground e são tratadas de volta como a salvação de um território em falência. Por isso, não consigo me livrar da sensação de estar do outro lado do espelho, num país irreal, onde quase tudo me rejeita. Me desloco por essas ruas empoeiradas como se fosse uma visitante vinda de outra dimensão, uma alienígena. Sinto que, cada vez mais, preciso me encolher dentro de mim para continuar cabendo aqui.
Agora consigo perceber que muita gente aqui sofre de alguma condição estranha. Parece uma enorme tristeza, talvez um ressentimento velho escondido no fundo até dos corpos mais jovens. Ou talvez seja algo maior que tristeza e ressentimento, mas eu não consigo achar a palavra certa para nomear.
“A vida? Não existe tal coisa; vejo linhas, superfícies, corpos sólidos e as suas transformações no tempo. Já o tempo parece um simples instrumento para medir as pequenas mudanças, uma régua escolar com uma divisão simplificada de apenas três marcações: foi, é e será.”
Tem dias em que me sinto totalmente daqui: quando ando com os cachorros pelas ladeiras, quando peço um abatanado com naturalidade, quando entendo a ironia sutil de uma senhora no supermercado. Em outros, sou devolvida ao meu não-lugar por um olhar, uma burocracia, uma piada infeliz. Mesmo assim, permaneço.
Por quê?
Também me pergunto isso, diante de um caso de xenofobia, ou na fila da AIMA, ou quando ouço algum vizinho dizer que “os brasileiros vêm para tirar o que é nosso”. Claro que conheço os meus motivos de permanência, mas hoje, meio que, não há razões tão explícitas para continuar. Tampouco existe castigo ou recompensa. Continuo por teimosia ou porque amar, às vezes, é insistir. Aprendi a amar Lisboa com todos os seus cortes. Amo o céu que me consola (essa cidade carrega sobre si os céus mais lindos que já vi), a sandes mista com pão de deus, as calçadas escorregadias que vivem me derrubando, mas que também me levaram a lugares que só andando devagar eu conseguiria descobrir. Amo até mesmo a solidão dos dias em que me sinto invisível porque foi nela que me reinventei.
O que me prende a Lisboa não é mais uma ideia de sucesso ou de fuga, mas um vínculo miúdo, pessoal, que só eu compreendo: o de estar em um lugar onde precisei ser adulta todos os dias. Todos os dias. Onde precisei escolher ficar mesmo quando tudo dizia “volta para a sua terra”.
Toda vez que ouço um amigo dizer “não aguento mais, tô pensando em desistir”, eu entendo imediatamente. Renovar o visto significa também renovar as violências que aceitamos sofrer em nome de sonhos maiores, de confortos íntimos demais para contar, em nome de outros nomes. Não há nada de heroico em permanecer, tampouco em partir. Ambas são decisões duras, que nos expõem. Escolhi ficar porque, no meio da exaustão, da xenofobia disfarçada de opinião e dos processos kafkianos para renovar o visto, conquistei uma intimidade com esta cidade. Uma intimidade que só se tem com aquilo que também nos fere. Sei que esta cidade não me quer completamente. Nem a mim, nem aos meus amigos. Nem aos indianos do mercadinho aqui da rua (as pessoas mais gentis que já conheci). Muito menos aos paquistaneses que entregam o Big Mac quentinho, mesmo debaixo de chuva no inverno. A cidade aceita a nossa força de trabalho, nosso dinheiro, nossa criatividade, nosso consumo, nosso funk, nosso açaí, mas resiste em aceitar a nossa existência plena. E, mesmo assim, a gente fica. Não por romantismo, nem para provar nada, mas porque, em algum lugar entre o <começo> e o <fim>, fizemos dela uma parte de nós.
*
Imigrar não é sair de um país para entrar em outro: é deixar de caber em qualquer lugar. Ficar suspensa para sempre, é aprender a se hospedar em si mesma, é virar ponte entre o que fomos forçadas a deixar e o que ainda não sabemos se vamos poder construir. É perder o conforto das categorias: não ser daqui, nem mais de lá. É desaprender o pertencimento como ponto fixo e reaprendê-lo como gesto contínuo. Lisboa me ensinou isso com sua luz amarelada e seus muros úmidos, com sua ternura ocasional e seu cansaço cotidiano. E eu, talvez por birra, talvez por uma forma esquisita de amor sigo aprendendo com ela.
Já não tento mais convencer ninguém de que aqui é bom. Também não tento me convencer de que é ruim. Apenas aceito e assumo: Lisboa é minha casa. E, como todas as casas reais, tem cantos empoeirados e cadeira com roupas acumuladas, portas que rangem, vizinhos barulhentos e silêncios que, às vezes, são solitários.
Sete anos depois, “onde pertenço” deixou de ser uma pergunta: não pertenço e é isso. Quero só continuar habitando (no gerúndio porque é assim que o meu povo fala) mesmo quando me dizem que não posso, mesmo quando Lisboa parece esquecer que já fui bem-vinda. Eu lembro e isso basta (por enquanto).
Todos os trechos aqui citados são do livro “Correntes” de Olga Tokarczuk.
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Para ouvir:
O livro de Junho do nosso clube é curtinho, o que significa que dá tempo de ler antes do encontro! Vem conversar comigo sobre Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo.
A história de Ponciá Vicêncio descreve os caminhos, as andanças, as marcas, os sonhos e os desencantos da protagonista. A autora traça a trajetória da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado.
Data do nosso próximo encontro:
29/06/2025;
16h BR 🇧🇷 20h PT 🇵🇹.
Li com os olhos cheios de lágrimas por dois motivos: por também estar quase completando meus 7 anos aqui e por lamentar não ter o dom da palavra para expressar exatamente o que vai no meu coração. Mas também me emociona ter te encontrado e saber que alguém consegue traduzir o que tem aqui dentro, com cada vírgula, cada letra.
Senti vontade de tomar um café contigo e falar sobre ir e voltar. Porque infelizmente não encontrei ainda ninguém que consiga entender tão bem o que sinto.
Obrigada por esse texto. E feliz "setanos". <3
Querida Tamires, como português, como lisboeta, não imagina a tristeza com que leio as suas palavras. Essa não é a cidade onde quero morar e também eu estou assustado, a sentir as ruas a ficarem mais estreitas e o céu a perder um pouco da sua magia. Receba um abraço meu.
Nunca deixe o gerundio para trás. Não encolha para pertencer. Você já pertence aqui, mesmo com os defeitos das calçadas ou com os ataques das vizinhas. Você já pertence aqui.
Obrigado por esta edição da sua Newsletter, tão honesta e dura. Parabéns por estes 7 anos. Desejo que o futuro lhe traga muitos dias de sol e vestígios de samba, qualquer que seja a morada.