O tempo do meio
“Tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar a desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo?”
Clarice Lispector - A Paixão Segundo G. H.
A consciência angustiante da passagem do tempo e a vontade predatória de colonizar o que ainda não está aqui.
Estou preocupada. E com medo, muito. Pela primeira vez em anos, reconheço e assumo que não tenho controle sobre nada, e essa consciência me paralisa. Nunca fui familiarizada com a ausência do controle, ainda que ele tenha sido - o tempo todo - uma ilusão. Mas agora a ilusão se desfez. O que me confortava foi arrancado sem aviso, e desde então, nunca mais consegui acreditar que comando a narrativa da minha própria vida.
Claro que tenho autonomia, faço escolhas da maneira mais organizada possível e trabalho nelas - diariamente -, como quem repete um ritual na esperança de que suas preces sejam atendidas. Mas entendi (e isso foi irreversível): não sei o que vai acontecer daqui pra frente. O futuro não me promete nada e eu estou apavorada com essa ausência de garantias.
Estou no tempo do meio. O tempo em que o desejo não basta, mas ainda assim é tudo o que existe. A fase onde se semeia e se torce para que alguma semente vingue e vire flor. Flor não, algo que me alimente: verdura, folha, fruta. Qualquer coisa que mate essa minha fome de dar certo. Sinto falta de sinais mais expressivos de que minha vida está caminhando. Conquistas de gente grande. Sim, envolve dinheiro, mas envolve também uma série de desejos antigos que eu quero tanto, mas tanto realizar: um emprego em um lugar saudável com um salário decente; a possibilidade de voltar, pelo menos, a sonhar em ter um teto todo meu; as viagens para culturas completamente diferentes da minha.
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A vida nos chega através das histórias que nos contam: a origem, a superação, o clímax, o desfecho. A jornada do herói. Mas ninguém fala sobre o tempo do meio. O tempo em que não há nada além do esforço cego, da repetição sem garantias, dos dias que passam sem provas concretas de que algo está mudando. Comparecer, todos os dias, no que tem potencial de virar <alguma> coisa. Melhorar as habilidades que podem ser usadas para ganhar dinheiro e financiar o que, realmente, faz os meus olhos brilharem. Escrever até me convencer de que sou boa nisso.
Os dias se encostam uns nos outros, indistintos, como ruas de um bairro onde todos os prédios se parecem. Tento lembrar o que fiz ontem e anteontem, mas tudo se dissolve numa massa cinza de pequenas repetições. Parece que tudo está suspenso, que a vida se recusa a revelar o que virá depois. Um tempo de gestos repetidos, de tarefas triviais que se acumulam, de manhãs idênticas às anteriores. Acordo, faço café, me sento diante do computador. Escrevo uma frase, apago. Mando currículos, faço uma aula, atualizo o portfólio pela terceira vez só este ano. Volto à escrita, esse lugar de conforto e angústia, onde canalizo a impaciência que se disfarça de frustração. Escrevo, e dessa vez não apago. Ainda que o resultado esteja longe do que idealizei. Tudo ao meu redor parece zombar das minhas tentativas. Mas sigo, como quem escava um túnel sem saber se há uma saída, a espera de uma ligação dizendo “parabéns, você foi contratada!”.
Lá pelo meio dia, pensamentos pouco frutíferos me distraem e obstruem o canal que criei para tentar chegar à algum lugar. <E se isso não levar a nada? E se não houver um caminho certo, apenas este, com suas dúvidas, com sua falta de garantias? E se eu estiver andando em círculos, convencida de que avanço?> Quero um sinal de que estou indo na direção certa, algo que confirme a existência de um destino. Mas nada chega. E sou forçada a continuar, como tantas vezes antes, sem certezas, apenas com a resistência do próprio esforço. Tento me agarrar a alguma lógica, um método que me prove que sim, que estou avançando. Mas como medir o que ainda não existe?
Me sinto grávida de um bebê que não quer nascer. Se fosse ele, eu também me recusaria a fazer parte dessa catástrofe.
A repetição daquilo que acredito me consola de alguma maneira. De novo ela, a ilusão, de que me organizar e insistir em determinadas práticas me trará algum resultado previsível. Como se eu já não tivesse passado por coisas o suficiente para entender que as dinâmicas da meritocracia não me favorecem. Ainda assim, sigo acreditando que, de um jeito ou de outro, estou fazendo tudo o que está ao meu alcance para que o desconhecido que se aproxima seja gentil comigo. Ainda que esse <tudo> seja atualizar a aba de vagas todos os dias no LinkedIn e escrever linhas de um livro que tem tudo para nunca ficar pronto.
Sinto falta de guias, sinais, spoilers. Qualquer coisa que valide as minhas tentativas. Mas ter essas respostas agora ajudaria? Estou pronta para saber o que vai acontecer nos próximos meses? A vida me ensinou que as histórias têm ritmo, que há uma promessa invisível que justifica o tempo gasto na espera. No semear. Mas e se essa promessa for uma invenção? E se o tempo do meio for apenas um tempo morto, onde nada de fato cresce, onde tudo se esvai antes de se formar?
Sinto uma raiva que me sufoca, um desejo violento de agarrar o tempo pelas mãos e obrigá-lo a se dobrar ao meu querer. Mas o tempo do meio não se submete. Ele permanece ali, imóvel, indiferente.
Abrir mão do controle da minha própria narrativa me causa desconforto, um medo absurdo, uma angústia que toma conta de tudo. Não ter o destino nas mãos, a impossibilidade de moldá-lo, estar de olhos vendados perante ele é assustador. Libertador na mesma medida, mas eu não sei lidar com essa liberdade. A abraço mesmo assim, preocupada e morrendo de medo. Qual outra opção tenho eu? Se não entender que essa persistência, justamente ela, já me tirou de tantos lugares inóspitos e vai me colocar (tem que me colocar🤞🏽), mais uma vez, em contato com o que há de mais bonito e rico nesse mundo falido. Confio porque essa fé dá coragem e dimensão às minhas tentativas.
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Confesso: não tem sido bonito. A frustração visita meus dias, enquanto estudo, trabalho e me movimento rumo a um destino que não conheço. A sensação é a de que estou numa eterna fila de supermercado e estou desconfortável, com vários produtos nos braços porque, como sempre, achei que não precisava de um cesto. Nunca chega a minha vez.
E de novo: eu não sei o que vai ser da minha vida daqui adiante. Tenho minhas apostas, torço para que boas notícias cheguem logo. Mas me reconheço muito pouco nessa fase do processo, sinto tanto medo. Já disse que estou apavorada? Insisto em me agarrar ao racional, ao que já me é familiar. Mas há momentos, ainda breves, em que me sinto exatamente onde eu deveria estar. Não é estranho? Odiar o tempo do meio, a repetição do semear, mas ainda assim sentir que me encontro onde tenho que estar?
Preparo mais um café, na crença de que isso vai fazer o tempo passar mais rápido e as coisas boas vão chegar logo. Mas a única coisa que acelera é o meu peito, a ansiedade corrói o cantinho da minha boca, que mordo tentando aliviar alguma angústia.
Tem dias que me acho um lixo, assumo que eles estão certos, sou inadequada, não sirvo para isso, nem para aquilo. Penso que estou pedindo demais. Em outros, me desvencilho dessa coitadice e repito, em voz alta, que as minhas vontades e expectativas devem ser levadas à sério, a começar por mim mesma: elas são reais e eu mereço que elas sejam atendidas. Em um momento, há um desejo de agarrar o tempo à força; em outro, uma aceitação do fluxo natural das coisas. Não há uma transição gradual entre esses polos, a mudança de tom - nas palavras e na minha vida - é abrupta.
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Ser a autoridade do meu querer, imperialista no que desejo, mas entender que não domino o que ainda não existe. E a coragem de estar consciente da efemeridade do tempo e ainda assim escolher continuar. Talvez seja isso que significa estar viva: avançar sem ver, persistir sem saber, confiar que, mesmo quando nada parece acontecer, algo — ainda oculto, ainda sem forma — já está acontecendo. Mas e se não estiver? E se nada estiver se movendo, se não houver promessa nenhuma, se essa espera for somente uma espera e não o prenúncio de uma boa notícia?
Ainda assim, sigo.
Não por fé, nem por esperança. Mas porque já não sei mais como parar.
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Para ouvir:
O novo álbum do BK tem acompanhado essa minha fase delicada (?), frustrante (?), tediosa (?). Gosto da sinceridade das letras, há uma autocompaixão comedida, dúvidas e inseguranças honestas entre momentos de reconhecimento da própria potência.
Outra que se encontra nesse limbo 🙋🏻♀️. É exatamente isso: persistir, mas a falta de um sinal de que esse esforço repetitivo e vendado está me levando a algum lugar deixa a caminhada mais difícil ainda. Não há o que fazer, apenas insistir na esperança descabida em nós mesmas.
O conforto em perceber que ta quase todo mundo nesse “ tempo do meio”. O tempo é nos dado todos os dias mas até algo tão concreto visto no relógio na verdade é completamente subjetivo. Viver por viver ou viver para algo/ a espera de algo? Difícil. Maravilhoso texto de uma frustração global dos nossos tempos modernos. Essa foi minha leitura antes de dormir. Nova inscrita :)