Acordo de manhã, é dia de trabalhar no escritório presencial. Quase no mesmo momento em que abro os olhos, abro também o Pinterest em busca de inspiração de looks para usar.
Um tempo depois, penso em começar a fazer uma peça em crochet. Passo horas a procura de referências: peças, cores e linhas. No dia seguinte, sou convidada para um casamento. Abro 30 abas no meu computador, cada uma com uma opção de vestido; vejo também inúmeras inspirações de maquiagem e acessórios no Tiktok e no Instagram.
E paro por aí.
Normalmente estagno na fase da inspiração.
É comum para mim gastar horas (e até dias) a procura de referências para o que quer que seja - de um look para tomar um café na rua à um sofá novo para a minha sala. Sou viciada em ver MUITAS inspirações a ponto de sair dali mais perdida do que quando entrei.
Além de perdida, acabo ficando estagnada. Não avanço. Não começo o crochet. Não decido qual vestido usar no casamento. Não compro o sofá. Só me inspiro. Até ficar exausta e afogada em referências que raramente são usadas na “vida real”.
Qual é o limite da procura por inspiração?
Buscar referências soa como uma ação, um movimento para alcançar determinado objetivo. Mas não é. Quando ficamos presas no looping eterno de procurar o que já foi feito para, então, fazermos a nossa versão, nos mantemos longe da verdadeira ação que é colocar a mão na massa.
Desejamos, procuramos inspiração e… paramos por aí. Pouco fazemos. Nenhum movimento além deste foi realizado.
Colecionar referências “freneticamente” nos dá a falsa ilusão de que:
estamos fazendo alguma coisa em prol de um objetivo (seja ele fazer uma peça de crochet ou dar o primeiro passo para uma mudança de carreira);
temos as melhores referências e isso, por si só, já é garantia de que teremos um bom resultado.
Mas quando gastamos tanto tempo à procura de inspiração, vendo o que já foi feito por outras pessoas, que horas trabalhamos, construímos e executamos a nossa versão? Há tempo para colocar pra jogo o nosso repertório e aplicar aquilo que já sabemos quando ficamos tão viciados em acompanhar o trabalho de terceiros?
Com tantas referências, onde fica a nossa originalidade?
Para mim a chave da originalidade está em, justamente, somar as nossas mais diversas inspirações com as nossas vivências. Não acredito na autenticidade como algo natural, que nascemos com ela; acho mesmo que é alimentada ao longo da vida, somos produtos de tudo aquilo que consumimos.
Mas ao termos acesso tão fácil e frequente a um volume insustentável de inspiração, quando nos permitimos olhá-las com atenção, entendê-las e interpretá-las? Quando deixamos com que elas nos invadam e tenham real efeito sobre nós?
Ao dependermos tanto de referências - até para sermos capazes de combinar uma calça preta com uma camisa branca (sim, isso é uma indireta para mim mesma), não damos espaço para exercitar a nossa criatividade, para deixar emergir qualquer interesse, vontade ou desejo genuíno de algo ser feito à nossa maneira, sem tanta influência externa.
O repertório que temos agora
Cá entre nós, raras são as situações em que realmente precisamos de referência para fazer alguma coisa. E igualmente raras são as vezes que essas inspirações são coisas totalmente novas para nós.
Claro, coisas como reformar uma cozinha ou organizar uma festa de aniversário temática precisam mesmo de referências, até para não acabar gastando dinheiro e demais recursos atoa. Mas, no geral, as coisas pelas quais buscamos tanta inspiração normalmente são aquelas em que nós já sabemos o que fazer.
Mas, tão baseadas no que outras pessoas já fizeram, desenvolvemos essa sensação de que estamos no caminho certo, que o que vamos fazer vai ficar tão bom quanto as referências que passamos dias vendo. Com isso, a gente se afasta de todo vestígio de originalidade que poderíamos ter envolvido no nosso próprio processo. Só reproduzimos coisas já feitas por terceiros, refazendo passos já dados por outras pessoas (muitas delas, inclusive, não tem nada a ver com a gente).
Essa “dependência” de inspiração nos causa também um excesso de informação que, ao invés de nos inspirar, nos confunde. Sem falar que faz com que a gente se compare muito com os outros e isso só nos afasta, ainda mais, de começar a trabalhar. Afinal, se não vai ficar tão bom quanto as minhas referências, melhor nem começar.
Será que essa busca eterna por inspiração não é uma auto sabotagem para não darmos o verdadeiro primeiro passo?
O medo de errar ou não ficar tão bom quanto as nossas referências nos mantém longe da verdadeira ação?
Estamos mesmo nos inspirando ou buscando validação das nossas ideias?
Estou aqui citando exemplos bobos, tipo o crochet e o sofá, mas já posterguei MUITO o início de projetos importantes e sérios para mim porque estagnei na fase da inspiração; o meu portfólio como UX Researcher e novos textos para a newsletter são coisas que enrolo para iniciar, mas que todos os dias vejo um caminhão de referências.
E é confortável achar que estou avançando nessas coisas quando me ocupo consumindo o que já foi feito por terceiros sob a desculpa de que estou a procura de inspiração.
Mas é fora desse ciclo vicioso que está o desenvolvimento dos meus projetos. É criando os meus próprios processos e me preenchendo dos erros e acertos, dúvidas e certezas que vão surgindo enquanto produzo que me aproximo daquilo tudo que desejo pra mim.
E nem estou falando de produzir só por produzir naquela definição ridícula (e atual) de produtividade. Falo de fazer coisas que, de algum modo, são importantes pra mim e que ficam eternamente a espera de que eu faça alguma coisa (além de ler mais um livro a respeito ou criar mais uma pasta no Pinterest).
É um esforço me convencer que não preciso ver 1000 ideias de outras pessoas antes de começar a trabalhar nas minhas próprias; que o repertório que construí se torna ainda mais rico quando as minhas mãos estão cansadas de tentativas que fiz, erros que cometi e aprendizados que ganhei fazendo.
Eu preciso acreditar mais no que sei - porque isso costuma ser suficiente. E silenciar a quantidade absurda de referências e estímulos de fora para conseguir focar no que posso e consigo fazer.
Não é sobre deixar de acompanhar a maravilhosa capacidade de outras pessoas de produzirem coisas incríveis, mas repetir a mim mesma que já tenho tudo o que preciso para começar e dar continuidade as coisas.
Diminuir a quantidade e a frequência com que recorro a tantas referências dá espaço para que o despretensioso, espontâneo e com a “minha cara” possa surgir. Transformar a fome por validação através de referências em coragem para me aventurar no aprendizado que ganho fazendo; me tornar uma das minhas referências ao descobrir que eu também sei fazer.
Meu crochê não vai ficar idêntico ao do Pinterest, tampouco o look que montei às 7h de uma segunda-feira. O meu portfólio não vai sair igual aos de 23829 UX Designers que salvei nos meus favoritos. Mas essas coisas (e muitas outras) serão feitas por mim do jeito que dá, com as coisas que eu sei e tenho aqui guardadas. Existe um mundo só meu, bem particular e íntimo, que ganha muito quando eu presto mais atenção nele do que em outros mundos.
Para assistir/ ouvir:
Procrastination - Podcast Anything goes with Emma Chamberlain (não é exatamente sobre o tema, mas acho que, consumir um monte de referências invés de dar o primeiro passo, acaba por ser uma forma de procrastinação. E eu adoro esse episódio!)
como pode, mulher? vc "acerta" o assunto com frequência haha
esse trecho tá especial:
"Eu preciso acreditar mais no que sei - porque isso costuma ser suficiente. E silenciar a quantidade absurda de referências e estímulos de fora para conseguir focar no que posso e consigo fazer.
Não é sobre deixar de acompanhar a maravilhosa capacidade de outras pessoas de produzirem coisas incríveis, mas repetir a mim mesma que já tenho tudo o que preciso para começar e dar continuidade as coisas."
"é sobre" reconhecer a nossa sapiência, certo? achei bom demais refletir sobre isso com o seu texto! <3
meu Deus, isto é algo que tem andado tanto na minha cabeça, mas que ainda não tinha conseguido materializar em palavras ou ideias; também me perco TANTO nas inspirações, acho que comecei essas recoleções na adolescência no tumblr, mas agora é muito mais intenso.
recolho nomes de filmes, livros, séries, ideias de hobbies, de roupas, de decoração, de estilos de vida, de hábitos, até de características, e no fim acabo por passar horas a fazê-lo sem integrar em mim nada de concreto. já nem sei há quanto tempo não vejo um filme do início ao fim (no tumblr ainda ia apontando nomes e vendo). os livros acumulam-se na estante e no kindle. nem te digo quantas capturas de ecrã tenho no telemóvel de coisas, sítios, livros, que achei interessantes e pensei "depois vejo". no fim o hobbie acaba por ser aquelas horas infinitas a recolher referências e nada mais.
talvez tudo seja muito rápido, talvez haja demasiada informação, talvez ainda não tenha aprendido a controlar o medo de estar a perder algo que seja interessante quando deixo de olhar o tiktok ou o pinterest. só sei que chegou a um ponto em que é demais e sinto que no fim do dia não tenho nada concreto a que me agarrar, que as referências, por serem tantas (demasiadas?) passam por mim sem deixar nada. preciso parar um bocado, olhar para tudo o que recolhi até agora e ver o que fazer com todos esses tesouros. uma reflexão de que estava mesmo a precisar, obrigada <3 é bom saber que não estamos sós