Uma vida pouco ambiciosa é, além de corajosa, meio monótona a depender do ponto de vista. Pela falta de metas ousadas e grandiosas, a gente se vê solto entre os dias, apenas fazendo coisinhas para manter uma rotina saudável e feliz, dentro de definições muito particulares.
Se você se distrai, logo cai na armadilha de achar que está vivendo errado; que devia também estar correndo atrás de objetivos audaciosos. O que é um perigo porque intrínseco à isso está a comparação - atividade que exerço muito e que raramente saio contente. Como posso estar satisfeita com essa vidinha mais ou menos quando todo mundo está conquistando coisas tão maiores? Conhecidos estão se casando, outros comprando carro e apartamento. Aquele amigo que ninguém dava nada foi morar em Nova York. Pessoas cada vez mais bonitas. Mais bem sucedidas. Será que só as minhas paredes estão descascando? Será que só eu continuo na mesma? Por que eu corro tão devagar? E aí, de repente, a rotina calma, simples e consistente construída com tanto zelo perde a graça. Afinal, se eu não estou, pelo menos, tentando ficar rica, belíssima e grifada dos pés à cabeça o que eu estou fazendo?
A visão neoliberal de progresso tentou matar a beleza dos discretos avanços que temos no dia a dia. Num sistema em que a sensibilidade não tem serventia, somos levados a acreditar que só as grandes conquistas importam - os diplomas, as compras, as promoções de cargo. Na ausência disso, não há nada para comemorar. Apenas celebrar a nossa longevidade não é suficiente para decorar as paredes com bexigas e acender velas coloridas. É preciso mais.
Ter crescido guiada por objetivos aspiracionais fez com que eu fosse capaz de mudar o meu cenário, ganhar dinheiro e garantir os acessos que, até então, eu não tinha. Durante muito tempo, uma certa ambição teve caráter emancipatório numa vida que, sem ela, poucas chances teria de ascender. Mas o que antes servia para me colocar em lugares mais confortáveis, começou a me adoecer.
Hoje tenho poucas metas capitalistas (na falta de um termo que melhor defina “viver em prol de conquistas materiais grandiosas” - apesar de eu querer muito conseguir comprar uma casa ainda nesta existência). Sigo em guerra com o que o trabalho significa pra mim e me perguntando se ele realmente tem que ter algum propósito além de sustentar a vida que eu preciso/ quero. Infelizmente, não estou em paz com isso e me sinto presa numa dualidade difícil até de conversar sobre. Foram muitos anos pensando de um jeito e, agora, criar novos conceitos para crenças tão enraizadas come um pouquinho do meu cérebro todo dia.
No que eu estou progredindo se não estou correndo atrás de nada grandioso?
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Dito isso, há uns dias, encarando a normalidade mais comum de uma terça-feira e procurando motivos para comemorar os meus 31 anos (logo eu, a maior fã de aniversários, estava desanimada e zero afim de festa), arrastei por horas uma tristeza chata pelo chão do meu apartamento.
Até que, quase 10 anos de terapia de repente fizeram efeito, e me vi confortando a criança sofrida que existe dentro de mim dizendo todas as palavras de carinho que a minha versão adulta conhece. No abraço que me dei, invoquei a mesma delicadeza que me faz ser capaz de escrever. Puxando e soltando o ar bem devagarzinho pelo nariz, comecei a listar os motivos que tenho para celebrar. Coisas que me aterrorizavam por serem desconhecidas e que agora domino. O que parecia ser tão difícil pra mim e já não é mais.
Colocar em perspectiva o progresso - mínimo, mas existente - que tenho alcançado me tirou da sombra de achar que não tenho razões o suficiente para comemorar a minha vez passeando por esse mundo. Posso não ter, no momento, planos mirabolantes para mudar de carreira e conquistar o mundo. Posso não estar tentando entrar no Forbes Under 30 (até porque né, tarde demais). Posso estar um pouquinho longe do meu objetivo de falar 4 idiomas e publicar um livro. Mas algumas coisas bonitas estão acontecendo comigo entre as 7h e às 23h todos os dias e é preciso dar o devido destaque à elas.
As nossas tímidas vitórias estão tão escondidas na rotina que a gente nem se dá conta quando se esbarra com elas.
De repente, aprendemos a fazer um delineado perfeito, inserimos 3 frutas e 2 legumes todos os dias nas nossas refeições, diminuímos a quantidade ingerida de Coca Zero e continuamos a viver como se esses avanços não significassem nada. Mas eles significam. Os pequenos conflitos que, num belo dia, são resolvidos também devem ser comemorados. Não de forma a nos colocar como um projeto que constantemente precisa de otimização, mas na tentativa de jogar luz no banal (que é, normalmente, o pilar das “conquistas maiores”).
A vida também ganha complexidade, beleza e significado com os discretos ganhos que acontecem em dias comuns, quando a gente está com aquela camiseta manchada de água sanitária e sem escovar os dentes.
Listo então as minhas pequenas vitórias, não na intenção leonina de me exibir (ok, talvez seja um pouco sobre isso, não vou negar), mas com o objetivo de te incentivar a fazer o mesmo. Se concentra, lembra daquele treino em que você conseguiu pegar os halteres de 5kg invés dos de 3kg e fica feliz com o seu avanço. É mérito seu.
Minhas pequenas vitórias:
Já não tenho mais crises de ansiedade antes de reuniões, entrevistas e afins em inglês;
APRENDI A COZINHAR E RARAMENTE FAÇO ALGO QUE FICA RUIM (não vale aquela receita de macarrão do Tiktok, Daniel!);
Treino, pelo menos, 3x na semana desde o começo do ano;
Tenho mantido uma constância EXCELENTE de escrita dessa newsletter!
Falando em escrita, tenho praticado o journaling todos os dias (nome bonito para dizer que escrevo, a mão, os meus pensamentos sem filtros);
Diminuí o meu tempo de tela de 6h para 4h (se você leu essa edição da news, sabe o avanço que isso significa);
Finalmente fiz um curso de escrita que não tem a ver com redação publicitária 🤠
Tenho levado os meus hobbies mais a sério: fiz um workshop de cerâmica depois de anos sem sujar as minhas mãos com barro, tenho alguns bordados em andamento e comecei a aprender a usar o Serato com a minha controladora (muito DJ ela 🎛️).
Prestar atenção nos detalhes que acontecem aqui dentro tem sido difícil. A minha capacidade de focar em algo e de estar realmente no presente foi abalada graças ao algoritmo do Tiktok. Mas percebo como as inúmeras tentativas de me trazer de volta funcionam quando me vejo tendo pensamentos mais gentis em relação à mim.
O exercício intencional de ampliar a nossa visão de avanço, ressignificando o que é progredir na vida, resgata a humanidade que a gente vai perdendo pelo caminho enquanto corre atrás de propósitos tão maiores. Óbvio que somos guiados por objetivos grandiosos e reconheço que eles tem a capacidade de moldar a nossa vida, mudar a nossa realidade e nos inserir em contextos muito melhores do que o que estávamos. Mas é de uma violência sem tamanho ignorar as vitórias singelas, aquelas que não merecem post no LinkedIn.
“É um sábado de paz onde se dorme mais
O gol da virada quase que nós rebaixa
Emendar um feriado nesses litorais
Encontrar uma Tupperware que a tampa ainda encaixa”
Emicida
Mirar em grandes conquistas é criar esperança para o futuro. Igualmente importante, enaltecer os tímidos progressos é ter clareza e convicção sobre o presente.
Que haja cada vez mais espaço na nossa agenda para celebrar as pequenas alegrias da vida adulta. No mais, desejo: quando aquela meta ambiciosa parecer distante demais, lembra que a sua rotina está cheia de vitóriaszinhas. Uma estrela dourada na testa não é uma medalha de ouro, mas ainda brilha.
Para ouvir:
Para assistir:
Correndo o risco de ser óbvia e repetitiva, mas Perfect Days foi algo que veio imediatamente na minha cabeça quando escrevia esse texto. Hirayama reconhece as pequenas vitórias que vai conquistando em sua rotina, tipo quando descobre que, ao serem reveladas, as fotos analógicas que tira de árvores deram certo. Se não viu, vê. Se já viu, vê de novo.
Que texto incrível, Tamires 🫂 como sempre!!!! Há umas semanas, falei disto com a minha psicóloga. Sobre a dificuldade que tenho em celebrar pequenas conquistas, movida pela mesma necessidade que tu em enaltecer, somente, as grandes conquistas..... Que, em si mesmas, me causam bastante aflição, não só pelas expectativas que coloco em torno delas, como pelo tempo que demandam para ficarem concluídas. Já muito antes desta conversa, comecei a treinar este exercício de celebração das pequenas coisas.
Por ser ansiosa, é muito útil parar, sobretudo no meio de um tornado, respirar e reconhecer que a grandiosidade da vida parte destes pequenos passos. Temos de aprender a andar de forma a colocar a corrida em prática. Tudo leva o seu tempo. Desde então, que anoto no meu journal, ao fim de pensamentos vários, três ou mais coisas pelas quais estou grata. Desde o acesso a água potável, aos jantares em família, ao facto de já conseguir treinar com halteres de 15kg, fazer leg extension com peso (tenho uma lesão no joelho que me impediu por meses), encarar -me ao espelho e, não obstante o desagrado com certos detalhes no meu corpo, não me detestar.
Gosto mais de mim do que alguma vez gostei, verto mais lágrimas de felicidade do que de dor, consigo vestir -me sem sentir tanta culpa ou nojo em relação ao meu peso, deixo-me amar e amo com a mesma intensidade.... Nesta busca por um propósito de vida, tenho trabalhado cada vez mais com coisas de que gosto, ainda que não pinte tanto quanto gostaria (trabalho como artista multidisciplinar, dou aulas e faço mestrado numa área que adoro de paixão (Estudos Urbanos, para os curioso)). Poderia ficar a manhã inteira a citar razões pelas quais o capitalismo já não me dá tanta ansiedade (embora ela ainda exista).... Talvez me dedique a escrever uma newsletter inspirada na tua, partilhando-a posteriormente contigo.
Só sei que foi bom ler-te, é como um abraço à distância, lembretes do porquê da vida merecer ser celebrada, sempre.
Obrigada 💕🙏🏽🫂
Um grande beijinho 😘
Eu amo todas as newsletters mas esta em particular era tudo o que eu precisava de ler esta semana! 😭💙 Estavas dentro da minha cabeça, obrigada por esta leitura deliciosa e por me fazeres sentir mais em paz